Era hipnotizante, um jugo para o olhar, vê-lo em parelha com uma bola, o inânime objeto que cheio de vida ficava ao mínimo contacto com os seus pés, pujante a rolar à sua boleia, serpenteante sob o domínio de um homem senhor do estilo de dança dele, só dele, em que a bola era simbiose em vez adereço. A hipnose dava-se com Andrés Iniesta em movimento e quando esperançosos corpos, ingénuos também, lhe saíam ao caminho, eram enganados pelo engodo vindo sempre da mesma origem: viam a bola, eles fazia questão de a mostrar, está aqui, roubem-na, e de repente, num ápice, já a perdiam de vista nos olhos entortados pelo baile que não lhes dizia respeito.
Presenciar Iniesta na posse de uma bola era mais do que um exercício de constatação. Tratava-se de um deleite visual. Nas barbas de todos, um jogador com supercola nas chuteiras, calmo no olho de qualquer furacão, inventava esguias maneiras de esquivar-se a adversários. Nunca foi o mais rápido, longe estava de ser o mais forte, a explosão e a aceleração corpóreas seriam satisfatórias quanto muito. O seu músculo era o cérebro. Ao longo de 16 anos no Barcelona, foi notícia as parcas vezes em que alguém, no campo, despojava o espanhol da coisa que estando na sua companhia, unidos os polos, parecia sintonizar o futebol com o além.
Ao fim chegou a companhia que deu ao futebol. Com 40 anos, mais de 1000 jogos depois, feitas cinco épocas no Japão onde viveu num hotel e saía à rua incógnito, a passear descansado com a família, às quais fez suceder um último ano nos Emirados, a negar o findar da luz que emagrecia desde 2018, quando saiu do Barça já sem alento para suster a força da elite. “Estar ali era o mais bonito no mundo, mas, ao mesmo tempo, era algo muito exigente e que te levava ao limite em todos os sentidos”, diria, já no Vissel Kobe nipónico e ao “El País”, de pazes feitas com as emoções fortes, preocupado só com desfrutar.
Neste século, ver Andrés Iniesta jogar, sobretudo avistá-lo na posse de uma bola, foi dos exercícios estéticos mais singulares do futebol. Repetiu-se a fotografia tirada ao espanhol rodeado por ladrões, uns quatro ou cinco à vez, parecia a mesma a cada captura, apenas mudavam as cores das vestes no momento antes da evasão do espanhol. Multiplicaram-se os vídeos dele a fugir de pernas adversárias com a croqueta, um-dois com ele próprio, a finta de um pé tabelar com o outro por quem constantemente mascarava o difícil de fácil, por parecer tão simples. Vendo a coragem de Iniesta, o futebol parecia ao alcance de qualquer um, mas não.
As palavras de Xavi, seu vizinho entre os pequenotes médios que tudo ganharam no Barça e na seleção espanhola, explicaram-no quando o careca genial deixou a Europa: “Quer sempre a bola. Saberão as pessoas o que isso significa? Quando muitos não a querem nem sequer pintada porque é uma armadilha, ele pede sempre por ela. Andrés ama a bola. Quando alguns jogadores pensam ‘ai, ai, ai’ ou ‘não, não ma dês, por favor, não agora’, Andrés aparecia e dizia: ‘Vá, dá-ma a mim, dá-ma agora, por favor.’” Iniesta recebia a bola e o mundo parava de rodar sobre o seu eixo. “Não sei de onde, mas Andrés aparecia sempre no momento certo... ‘Olha para mim, estou aqui.’”
Curioso como de um jogador tão siamês com a bola, de acordo com a lei da ditadura das impressões, ficarão dois golos que a memória de qualquer adepto resgatará se escutar o nome de Iniesta: em 2009, a minuto e meio de ser eliminado em Londres, puxou a culatra direita atrás e pontapeou a bola que deu a primeira final da Liga dos Campeões ao Barça da geração Guardiola, festejando que nem louco com a camisola despida; no ano seguinte, no prolongamento da final da África do Sul, disparou o remate que deu o Mundial ensanduichado entre dois Europeus à Espanha, porventura a seleção mais dominadora da história.
A rir das escrituras do destino no qual não acredita, explicando-se com simplicidade igual à que o guiava no campo - “tocava-me estar aí e eu estava” -, Iniesta, ou Don Andrés Iniesta, assim o tratam desde então, fez do momento de Joanesburgo a sua particular “lei de Newton”. Sem gostar de justificações celestiais, refugiou-se, poucos feitos desde essa conquista, na elementar ciência para explicar o que lhe aconteceu. “Quando controlei a bola, sabia que ia ser golo”, radiografou também ao “El País”, ao falar da sua receção que deixou a sua melhor amiga a pairar no ar. “Só tive que esperar que baixasse para a rematar. E por que baixou? Pela lei da gravidade.”
Quando a maça lhe caiu em cima do pé direito, o fotograma do golo assemelhou-se a um compêndio da carreira de Iniesta. Recebida a bola passada por Fàbregas, havia seis holandeses para dois espanhóis perto da área, uma ode às improbabilidades simbolizada por um cerco, mais um do qual ele se remediou, se não com dribles gelatinosos, então a ir ter com a baliza que nunca quis muito com ele. Em 16 temporadas de Barcelona, por exemplo, fez sete a marcar dois golos ou menos. Se já não era o médio com mais queda para as assistências, mas um pré-assistente, um desatador de nós que emergia de um novelo com a ponta do pio na chuteira, menos ainda Iniesta se guiava pelos golos no futebol.
O que o chateava, confessaria, a palavra com certeza demasiado pesada, foi que depois “todos os golos que meta não sejam valorizadas como esse”. Andrés Iniesta sabia-o. “Com o que me custa marcar golos…” Ao mais fascinante que marcou, juntou o altruísmo que tantos lhe louvam. Também em Joanesburgo tirou a camisola para mostrar, na t-shirt vestida por baixo, a mensagem tatuada no seu coração: “Dani Jarque, sempre connosco.” Na descarga de alegria mais áureo dos seus feitos, no palco fascinante inferior a nenhum outro, Iniesta homenageou o amigo falecido meses antes, jogador do Espanyol, clube rival do Barcelona, com quem crescera a partilhar boleias na cidade.
Por Jarque e pelo frágil corpo que teimou em atemorizá-lo com lesões ao longo da carreira, a antecâmara do glorioso Mundial pintou-lhe a vida com o mais drástico dos seus negros. Entre as sucessivas mazelas musculares e a perde do amigo, uma depressão afundou Andrés Iniesta, enfiou-o no escuro. Foi o homem que chegou a pedir para dormir na cama dos pais e a quem o sono fugiu na véspera da final do Campeonato do Mundo - a ansiedade fê-lo ir correr para os corredores do hotel para se certificar que o corpo não estava nos arames, que não o ia trair mais uma vez. Para se amigar da bola e ultrapassar adversários, Iniesta teve de superar os seus monstros.
E como os domou, renegou até, espezinhando-os valentemente. Antes e depois de sacudidos os demónios, o médio conquistou quatro Liga dos Campeões, três Supertaças Europeias, nove campeonatos espanhóis, três Mundiais de clubes e a hegemonia garantida com a seleção entre 2008 e 2012, quando os passadores de bola pequenitos, inicialmente postos na mesma roda por Luis Aragonés, lá mantidos depois, a jogarem à rabia com o mundo, por Vicente del Bosque, mostram que o cérebro é a esteira que trata melhor a bola.
Na carta que Xavi lhe escreveu haverá algum consolo que nos aproxime de compreender o quão especial foi Iniesta: “Às vezes, durante os jogos, só assistíamos. ‘Como raio ele fez aquilo? Como escapou? Era impossível.’ Dava a impressão que não havia coisas impossíveis para ele quando pegava na bola. Não me lembro de um grande jogo em que não tenha aparecido. Não me lembro porque não existe. Andrés estava sempre lá.” Quando já se sabia que 2018 seria o seu último ano em Espanha, os adeptos do futebol, antes de o serem de clubes, também estiveram para ele, aplaudido em cada estádio de Espanha por onde o Barça ainda jogou.
Permanecerá nas recordações do futebol como um desses artistas, mestres do intangível, em quem a luz apenas acendia quando a bola lhes chegava. Quando a de Zidane se apagou, acendeu a de Iniesta, outro jogador plasticina a desviar-se de corpos sem por um milésimo de segundo perder a companhia da melhor amiga. “O dia da minha retirada vai ser terrível. Creio que estarei preparado, mas vai ser terrível. É muito duro, porque sabes que depois do último jogo não há mais”, lamentava, há quatro anos. O dia do fim será o de 8 de outubro, quando confirmar o seu descanso. No vídeo em que o anunciou, pôs na horizontal o número predileto, o oito que tinha estampado no Barça. Ficou o símbolo do infinito, porque a hipnose de Andrés Iniesta jamais terminará.