Para o epitáfio da linha de três centrais do Sporting não bastaria uma só lápide, teria de ser mais que um pedaço de granito, afinal o rol de memórias é farto. Foram quase cinco anos de fé nessa base para um sistema anafado em alegrias: houve dois campeonatos ganhos, viu-se um defesa matulão a suster o coração dessa linha e a avançar lá para frente aquando dos ai-jesus por golos, susteve a infância de outro defesa a jogar à direita sendo canhoto. Às tantas, parecia indiferente quem fossem os ocupantes dos postos, tão oleado estava o motor de três cilindros e a máquina que locomovia.
Ido embora o seu mais que tudo e apologista-mor, a linha de três sobreviveu-lhe por também ser alvo da crença do substituto, mas a obra barrienta de João Pereira não fez jus ao betão em que o erguera Ruben Amorim e meros minutos foram suficientes para ao primeiro jogo, logo um dérbi, o que antes parecia um dogma ser largado que nem dente de leão numa rajada de vento. Ouviu-se o apito em Alvalade e estava Matheus Reis à esquerda, Jeremiah St. Juste ao seu lado, ele ladeado por Ousmane Diomande e a estibordo Eduardo Quaresma. Um quatro em linha deem-se as voltas que se quiserem dar à questão.
Esse contorcionismo já constara em Rui Borges, o novo treinador, queixoso de a malta insistir nisto dos sistemas e das táticas quando o modelo de jogo que as norteia, mais as dinâmicas e os desdobramentos, é que importam, quem o ouviu pode ter respondido sim senhor, ámen, mas a assimilação que interessava tinha de existir em quem joga. E rápido, se faz favor, diriam os adeptos, embora calma, isto não não vai correr bem ao início, acautelou Rui Borges, cheio de prudente razão na véspera. Mas não tanto no próprio dia.
Porque o Sporting, com três dias de convivência com o técnico, teve 45 minutos a aparentar que era uma relação de semanas, tal a forma como impôs as suas vontades a um Benfica com quatro meses de Bruno Lage, cujo truque na manga foi dar à nada experimentada linha defensiva um inesperado Zeki Amdouni. Irrequieto e mais mexido, dado a escapulir-se à marcação, até o suíço pareceu o presente sobrado debaixo da árvore que os leões já sabiam ter de desembrulhar.
A primeira parte mostrou um Sporting a partir de um 4-4-2, cómodo na nova pele, incisivo a impor desconforto no adversário ao pressionar alto na saída de bola com uma esperta lição estudada: não querendo dar tempo, nem espaço a Carreras, o lateral que melhor constrói, Geny Catamo apertava-o em cima enquanto Gyökeres vigiava de perto Tomás Araújo, o outro mais confortável com bola. Perturbados estes dois, os leões convidavam o Benfica a sair pela direita, no errático Bah, ou a tentar a insegura via de Florentino, o médio permeável a tremer quando pressionado. Por eles, pelos seus abanões, toda uma equipa tremelicou, nunca saindo de forma limpa da sua área e perdendo sucessivas bolas.
Houve duas perigosas, quase fatais, em que Geny picaria um cruzamento tenso e Quenda, quase na pequena área, foi negado pela abertura de asa do albatroz Trubin, rápido a sair da baliza, e na outra um furibundo Gyökeres, do meio da avenida, estourou um míssil que o guardião ucraniano se esforçou para defender. Quando não houve recuperações altas, já se viram coisas de um Sporting organizado, no papel, em 4-4-2, mas onde Hjulmand recebia à vontade nas costas da primeira pressão encarnada, Morita moribundeava mais à frente, pelo centro-esquerda, juntando-se a ele, por vezes, Quenda para criar as superioridades quando não bastava aos leões terem homens na largura para soltarem quem pretendia.
Esse alguém era Francisco Trincão, vadio com carta verde, o gerador de vantagens na órbita de Gyökeres e a equipa a usar os apoios frontais do sueco para soltar depois o cabeludo do bigode e da pêra ao primeiro toque, deixando-o de frente para o jogo. Assim o canhoto lançou arrancadas de Geny, da mesma forma teve um remate demasiado em jeito na direção de Trubin, eis um vagabundo que já o era e agora podia sê-lo ainda mais declaradamente, uma das pequenas nuances de novidade.
Mas nada de novo, nem um píncaro, se viu na gestação do golo do Sporting, parco em rasgos de criatividade porque cheio esteve de ingenuidade de Tomás Araújo. Ao abordar uma bola vinda de lançamento lateral, o incauto central foi encostar o seu corpo ao de Viktor Gyökeres, deu ao sueco o que ele tanto quer e gosta: o encosto desamparou o adversário, deu-lhe a referência para rodar, arrancar e ir à linha cruzar a bola que Geny Catamo rematou ao segundo poste (28’) com a sua atração por dérbis. Era o terceiro golo do moçambicano em dois jogos contra o Benfica.
Amorfo e impávido, o Benfica nunca teve Di María a ditar o que fazer à bola nos últimos 30 metros, sendo obrigado a muito recuar para surgir nas jogadas. A equipa apenas reagiu com a ajuda da mão do treinador, que ao intervalo a absolveu de ter Florentino com um alvo nas costas para a pressão do adversário e lançou Leandro Barreiro. Os efeitos não tardaram.
O luxemburguês tratou de vigiar Hjulmand, permitiu aos encarnados pressionarem mais alto no campo e o Sporting, privado de ter um dos seus médios a participar nas saídas de bola, viu-se forçado a recorrer ao jogo mais direto para o seu grandalhão sueco. Sem os tentáculos do seu médio recuperador, teve de recuar Kökçü, ganhando preponderância na bola que o Benfica passou a ter em maior dose. Não demorou a juntar ao livre direto do turco, único remate que fizera na primeira parte, um cruzamento maroto que Bah apontou à baliza - e Israel reagiu a tempo de desviar - e uma cabeçada de Otamendi num canto batido por Di María.
O perigo a sério viria de Zeki Amdouni, ao ir buscar um passe picado de Kökçu, à entrada da área, após a tabela que Aktürkoglu pediu a Aursnes para zarpar na esquerda e cruzar. Com a bola a meia altura, o suíço rematou-a para lá da trave da baliza, melhor oportunidade fabricada por um Benfica crescido com a adaptação ao Sporting, mas não o suficiente para abanar as suas novatas estruturas. Di María era resgatado das sombras, já surgia, bola ao seu pé esquerdo, mas a reação afunilou-se bastante no argentino. O turco da varinha mágica raramente aparecia e Kökçu não tinha opções a desmarcarem-se no espaço, para as servir com os seus passes.
O Sporting lidou com a predominância do Benfica na segunda parte recuando as linhas, apenas contornando a vigilância que tapava Hjulmand pelo jogo direto ou via o endiabrado Geny Catamo, cujas veias devem ser percorridas por um sangue a pulsar com carinho por estes dérbis. Quando não houve ligações a um ou dois passes para Gyökeres, pungente, cavalgar sozinho contra Tomás Araújo e arranjar forma de uma jogada nos seus pés sempre acabar em finalização (Trubin esticou-se na relva para o negar), os leões tiveram a ocasional genica do moçambicano a levar a bola aos ziguezagues, mostrando-se aos seus, desviando-se dos outros e levando a equipa para a frente.
Mas os leões, no segundo ato, existiram ofensivamente ao supetão, nas sobras do quanto eram capazes de aguentar sem a bola, que o foram, porventura surpreendentemente. Não seria de esperar tanta telepatia de Diomande e St. Juste a fazerem dobras às costas do outro, ou de Matheus Reis e Eduardo Quaresma a serem laterais de corpo feito. Nem que houvesse nova coleção de hábitos atacantes, seria impossível em três dias, portanto a resistência do Sporting fez-se da atitude competitiva que Rui Borges, vestido de colete e interventivo diante do banco, tanto falara na antevisão ao dérbi com o seu sotaque nortenho.
Se o limitavam a participar com bola, Hjulmand arregimentou-se para roubar, intercetar e lançar contra-ataques, a equipa uniu-se ao capitão sobretudo após as substituições (Maxi Araújo, João Simões e Iván Fresneda de uma vez), que resgataram a agressividade ao Sporting para estancar um pouco o crescimento que o Benfica teve após o intervalo por baixar Kökçü para junto da bola. Depois, na resistência, os leões subsistiram, inclusive com hipóteses de pegarem no machado e recorrem à estucada-mestre por quem parece tocado pelas preferências dos deuses dos dérbis.
A Geny Catamo foi parar uma transição a cinco minutos do fim, lá foi ele algo corcundo e curvado, arrancou imparável e forçou uma situação em que eram quatro jogadores do Sporting a empurrarem dois do Benfica contra a própria área. Quem marcou dois golos no último dérbi quis ter outro par neste, tentou rematar, Carreras bloqueou-o e o tenor de reprovação no estádio pela falível decisão juntou-se ao desespero de quem estava livre, a pedir ao moçambicano que partilhasse um pouco da sua glória.
Ganhou na mesma o até há dias sorumbático Sporting, enterrado numa pequena crise sucessória de treinadores. Esta noite em Alvalade era de dérbi, um jogo que dispensa motivações e a aterragem de Rui Borges suavizou-se pela atitude dos jogadores, nisso ele acertou na mesma medida em que lhe correu bem a aposta no 4-4-2 de estrutura base, que deixou pistas para o que poderá vir aí - um Trincão a deambular nas costas de Gyökeres, um Harder à espreita como plano B para uma dupla de avançados e talvez um clube a farejar o mercado em janeiro por laterais. Sem alterar muita coisa, o novo treinador destabilizou um Benfica que só jogou quando se adaptou, mas não a tempo de evitar a morte da sua liderança do campeonato.
Muito pouco se viu, um jogo quase nada mostra. Sobretudo, Rui Borges arranjou oxigénio e o Sporting algum fôlego da penumbra que o cercava. No derradeiro ato de 2024, os leões enterraram a sua fidelidade à linha de três centrais. Mais do que uma lápide, precisarão de um túmulo, quem sabe de um mausoléu, mas vivo ainda está Geny Catamo, o homem do momento dos dérbis, por enquanto até imune a más decisões.