O lance estava trapalhão, com uma gatafunhada de nove jogadores à bulha em 10 metros quadrados de relva em Alvalade. Tudo começou num lançamento lateral à direita do meio-campo do Estoril Praia: bola arremessada, bola perdida, jogadores do Sporting atabalhoadamente a darem-lhe vazão, houve uns ressaltos e o jogo, aos 66 minutos, conheceu um ápice de caos. De cabeça em baixo e vidrado na preciosa, Xeka nem reparou que a bola já era posse de Wagner Pina, companheiro de equipa que corria na sua direção. Ambos distraídos das redondezas, chocaram um com o outro, cara com cara, caindo de imediato.

A ação prosseguiu e o jogo só parou oito segundos depois, quando o árbitro reparou nos dois jogadores do Estoril Praia estendidos no relvado. O estádio serenou. Ouviu-se um cântico trocado pelos topos das bancadas de Alvalade, mas o burburinho de fundo sossegou. Durante mais de um minuto, a realização da Sport TV mostrou adeptos, futebolistas em aquecimento e os bancos de suplentes, tudo planos longe de Xeka e Wagner Pina, para que na televisão não surgissem imagens dos jogadores enquanto era incerto o seu estado.

Quando se puseram de pé, demorando o seu tempo, ambos tinham feições atordoadas: massajaram a face, pareceram algo confusos. Xeka encostou a palma das mãos nas têmporas, Wagner Pina abriu e fechou os olhos várias vezes. A partida retomou-se aos 68’, praticamente dois minutos após ser interrompida, com os dois jogadores em ação, sem sequer terem saído do campo. Mal o apito se ouviu, o Estoril Praia acelerou uma jogada de ataque, teve hipótese de cruzar a bola e os dois arrancaram para se aproximarem da área. Aos 70’, o encontro parou de novo quando o lateral direito da equipa visitante se deitou de costas na relva, com as pernas fletidas, a olhar para o céu. Xeka punha-se de cócoras, enchia as bochechas de ar e soprava.

Apenas foram substituídos aos 73’ por suspeitas de concussão cerebral, indicou o Estoril Praia à Tribuna Expresso, o que mais tarde, na reavaliação feita pelos médicos da equipa, não se confirmou.

Carlos Rodrigues

Mas teve que ser o clube, por sua iniciativa, a agir pela prudência após o choque bruto e feio entre os jogadores. Estando a prioridade na saúde de ambos, a equipa teve de usar duas das cinco substituições a que tinha direito no jogo para retirar Xeka e Wagner Pina do campo, decidindo por sua conta e risco em Portugal, onde na I e II Ligas as decisões de retirar de campo um jogador caso se suspeite de um traumatismo craniano ainda dependem totalmente no julgamento de cada equipa.

Há mais de quatro anos, contudo, o futebol português parecia disposto a mudar.

Após um jogo no Estádio Nacional, no Jamor, no qual o guarda-redes Stanislav Kritsyuk, da B SAD, colidiu com Nanu, do FC Porto, provocando uma concussão e um traumatismo vértebro-medular ao lateral dos dragões, a Liga de Clubes anunciou de pronto uma reação em parelha com o Sindicato de Jogadores. “Ambas as instituições decidiram desenvolver uma posição conjunta, na qual pretendem envolver os médicos do futebol profissional. O caminho passa por poder adaptar as recomendações internacionais à realidade portuguesa”, leu-se, em comunicado. Isto foi em fevereiro de 2021.

“É com sentido de responsabilidade e desejo de melhorar a resposta que proteja a saúde dos jogadores que trabalharemos com a Liga na implementação dos princípios e normas de conduta cientificamente recomendados”, explicou Joaquim Evangelista, presidente sindical. “No sentido de minimizar essas situações, iremos trabalhar em articulação estreita com os departamentos médicos das Sociedades Desportivas. Um trabalho sério de sensibilização para que integrem nos seus protocolos de trabalho medidas tendentes a salvaguardar a integridade dos atletas”, defendeu Pedro Proença, ainda na liderança da Liga.

Desde então, porém, nada mais foi comunicado pela entidade que organiza os dois principais campeonatos do futebol nacional. Questionada sobre eventuais desenvolvimentos, a Liga ainda não respondeu.

Ao contrário da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), à qual Pedro Proença chegou recentemente à presidência. Em agosto do ano seguinte, introduziu uma substituição extra em jogos da Liga 3 e Liga BPI feminina “em caso de concussão cerebral ou suspeita da mesma”, hipótese que entrou em vigor em 2022/23. O mesmo já acontecia desde meio da época 2020/21 na Premier League, quando os clubes votaram a favor da medida meros dias após o horripilante choque entre David Luiz e Raúl Jiménez na partida entre o Arsenal e o Wolves. O avançado mexicano caiu inanimado no relvado, fraturou o crânio, sofreu uma hemorragia cerebral. Ficou nove meses sem jogar e os médicos disseram que foi um milagre ter sobrevivido.

Qualquer alteração deste tipo feita por uma federação nacional tem de ser previamente aprovada pela FIFA e o IFAB, instituição responsável por gerir as regras do futebol. Em março de 2024, aprovou o uso geral da substituição extra em caso de concussão, mas, no Regulamento das Competições disponível no site da Liga de Clubes, nenhuma linha existe acerca de tal possibilidade.

Nos dois principais campeonatos profissionais de Portugal, se suceder um episódio como o de segunda-feira, ocorrido no Sporting-Estoril Praia, em que existam suspeitas de traumatismo craniano, uma equipa ainda é obrigada a ‘gastar’ uma substituição se agir de acordo com a cautela desejada por toda a gente.

No râguebi pródigo em contacto físico, cheio de placagens e colisões constantes de corpos musculados, existe, desde 2015, um protocolo de concussão que obriga qualquer jogador a permanecer 10 minutos fora de campo para ser avaliado por uma equipa médica caso sofra uma pancada na cabeça e haja suspeita/sintomas de concussão. Durante esse tempo, é substituído temporariamente e entra outro jogador para o seu lugar. O críquete e o futebol americano (NFL) têm regras semelhantes.