Entre as várias inovações que a Fórmula 1 introduziu na última década para chamar novos públicos, a divulgação para quem está em casa das comunicações entre pilotos e engenheiros terá sido das mais bem-sucedidas. Será ingénuo acreditar que todas as conversas são tornadas públicas, mas ainda assim é possível mergulhar nas estratégias, conselhos, preocupações e desencontros entre quem conduz o carro e o cérebro que gere a corrida na garagem.
E em 2025, pela primeira vez, vamos ouvir uma voz feminina nessas comunicações.
Setenta e cinco anos depois da primeira corrida do Mundial de Fórmula 1, a principal disciplina do desporto automóvel terá uma mulher como engenheira de corrida, ou seja, como braço direito e principal elo entre o piloto e a box. A voz a ecoar no seu pensamento. O nome de Laura Müller, alemã de 33 anos, foi anunciado no início desta semana pela Haas como futura engenheira-chefe de Esteban Ocon, confirmando-se assim uma notícia que parecia certa desde dezembro, quando Müller acompanhou os primeiros passos do piloto francês na Haas, nos habituais testes de final de temporada em Abu Dhabi.
Com já vasta experiência no desporto motorizado, Laura Müller chegou à Haas em 2022, começando por trabalhar na área de simulador da equipa norte-americana, antes de subir na hierarquia, tornando-se nas últimas temporadas numa das engenheiras de performance da escuderia que foi 7.ª classificada no Mundial de construtores em 2024. Agora, atinge um patamar que até hoje nenhuma mulher havia conseguido desde os primeiros roncos dos motores, no longínquo ano de 1950.
A competência da germânica foi, de acordo com Ayao Komatsu, chefe de equipa da Haas, o único critério para a escolha. “Não queremos saber de nacionalidades, de género. Não importa mesmo porque o único que interessa é o trabalho, como te adaptas na equipa e como podes maximizar o desempenho. Acredito que é a escolha correta”, sublinhou o japonês.
Fã de Schumacher
Se o amor pelo desporto automóvel faz parte das mais prematuras memórias de Laura Müller, a engenharia foi um gosto adquirido. Numa vídeo da Haas para promover o Dia Internacional da Mulher na Engenharia, que se comemora a 23 de junho de cada ano, a alemã confessou que nos primeiros anos de escola pouco se interessava por disciplinas como a Física ou Química, basilares para quem quer ser engenheiro. O gap year que fez na Austrália antes de decidir o que iria estudar na faculdade apontou-lhe o caminho.
“Eu não era uma dessas pessoas que já sabia o que queria ser desde cedo. Então tirei um ano e fui para a Austrália. Eles têm muitos carros com motores de grande potência por lá e isso reavivou o interesse que tinha por desportos motorizados em miúda. Foi aí que decidi que queria ser engenheira”, explicou.
Fã do compatriota Michael Schumacher, Müller tirou o curso em Munique sempre com o objetivo de um dia trabalhar no desporto motorizado. Foi ainda durante os estudos que fez os primeiros estágios em equipas de fórmulas de promoção. Antes de chegar à Haas, trabalhou ainda no DTM e com equipas de resistência. Curiosamente, a primeira vez que enviou uma candidatura para a Haas, em 2021, não foi escolhida. Agora, apenas quatro anos depois, assume uma das posições de maior responsabilidade na máquina da equipa norte-americana a cada fim de semana de corridas.
“Ela é muito determinada e trabalha muito. A sua ética de trabalho é muito, muito boa. O Esteban [Ocon] tem também um carácter muito determinado e por isso acho que as suas personalidades vão combinar muito bem”, disse ainda Ayao Komatsu no dia em que anunciou várias mudanças em áreas-chave da Haas, nomeadamente a chegada de outra engenheira, Carine Cridelich, para o papel de chefe de estratégia - a francesa junta-se a Hannah Schmitz, que tem o mesmo cargo, mas na Red Bull.
Ainda sobre Laura Müller, Komatsu reforça a qualidade do trabalho da engenheira na hora de ir ao fundo de cada problema. “Ela não se contenta com a primeira resposta. Algumas pessoas, quando encontram uma resposta, param aí. Pensam, ‘ah, fantástico, encontrei a solução, siga’”. E no que diz respeito à comunicação com o piloto e o carro, tão importante na hora de passar mensagens quando se conduz a 300 quilómetros por hora, o japonês assegura que Müller é “muito clara e muito calma”.
Preconceitos e condescendência
O trabalho de engenheiro de performance é um labor minucioso, quase de ourives. Mas com consequências imediatas, sejam elas boas ou más. Laura Müller garante que essa é a melhor parte do seu emprego, “poder ver resultados quase instantaneamente”.
“Uma hora depois de decidir algo, eu vou saber se foi um absoluto desastre ou muito boa ideia”, frisou num vídeo da Haas, em que falou também dos estigmas que ainda sentiu no mundo do desporto motorizado por ser mulher.
“Há 5/10 anos ainda havia muitos preconceitos com as mulheres, mas nunca foi algo que me tivesse assustado ao ponto de querer parar”, disse. Em 2023, em entrevista ao jornal alemão “Frankfurter Allgemeine Zeitung”, Müller assumiu que viveu “coisas horríveis” enquanto mulher engenheira, principalmente nas categorias inferiores, mas que na Fórmula 1 nunca sentiu essa condescendência. Quanto mais importante é a categoria, “mais igualdade existe”, sublinhou.
“Quando perguntas a uma mulher qual foi a pior coisa que ela já viveu no automobilismo, ela nunca vai dizer a verdade. Ninguém quer ouvir a verdade”, revelou ao jornal alemão. A sua chegada ao pináculo do desporto motorizado é um passo gigante para que mais nenhuma mulher se sinta menorizada.