“Bem, o que estou a fazer agora não é o meu forte. Sei que é algo que vem juntamente com o trabalho, mas não é o meu forte, admito…”

A honestidade de Lee Carsley, expressa em conferência de imprensa, chega a ser desarmante. O que estava a fazer, aquilo que admite não ser o seu “forte”, é falar em público. O discreto Lee, de 50 anos e com 282 jogos de Premier League como futebolista, é, no banco, um reflexo do que fazia enquanto jogador: parte da engrenagem, um profissional com uma função, um membro de um sistema funcional.

Um centrocampista operário no Blackburn, Everton ou Birmingham. Um selecionador inglês que, para já, tem o rótulo de interino, de temporário enquanto não se toma uma decisão definitiva em relação aos destinos da equipa vice-campeã europeia. Depois do torneio, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Itália ou Países Baixos mantiveram o comando técnico.

A exceção foi a Inglaterra, no fim de ciclo de Gareth Southgate e na abertura de uma nova página, cuja duração é incerta. Irá Lee até 2026? Durará somente alguns meses, no fim dos quais se convencerá Klopp a aceitar o cargo? Ninguém sabe.

Para já, Carsley garante que a nova página não é uma nova história. “Não é o começo de algo novo”, diz o técnico, que assume “beber do bom trabalho” do mais bem-sucedido selecionador inglês dos últimos 50 anos.

Mas o arranque de Carsley teve, de facto, muito de novo. Ou de regresso ao passado, recordando-nos que a seleção inglesa é, por definição, um espaço de conflitos, de polémicas, de folclore. Southgate, o político e consensual Gareth, o homem tão capaz de consensos e diplomacias que houve quem defendesse ser o melhor candidato ao número 10 de Downing Street, soube acalmar essas águas agitadas com mestria, mas a tempestade deu sintomáticas boas-vindas a Lee enquanto este ainda se acomodava na cadeira.

Mas qual cadeira, mesmo? Para que lado é?

Depois de ir, por engano, para o banco da Irlanda, Carsley teve de se levantar e ir para o de Inglaterra
Depois de ir, por engano, para o banco da Irlanda, Carsley teve de se levantar e ir para o de Inglaterra Stephen McCarthy/Getty

Na estreia no comando de Inglaterra, em Dublin, contra a República da Irlanda, Carsley saiu do túnel e foi na direção errada. Em vez de ir para o banco inglês, sentou-se no irlandês. “Como sabem, passei lá muito tempo durante a minha carreira, daí ter-me equivocado”, justificou o técnico após o desafio (2-0 para Inglaterra), novamente com honestidade desarmante, brincando com a quantidade de tempo que foi suplente pela seleção da Irlanda.

E entra aqui a primeira grande polémica artificialmente criada da era — durará o suficiente para merecer este nome? — Lee Carsley. Nascido em Birmingham, Carsley viria a disputar 39 partidas pela República da Irlanda, por quem atuou no Mundial 2002. Quis o destino que a estreia como selecionador inglês, “um dos dias de maior orgulho” nas cinco décadas de vida de Carsley, nas palavras do próprio, fosse em Dublin.

Antes da partida, o técnico, que passou os últimos anos na estrutura da federação inglesa, triunfo no Europeu sub-21 de 2023 incluído, confirmou que não cantaria o hino, mantendo uma posição que já relevava nas camadas jovens de Inglaterra. Tudo normal, terá pensado o ex-jogador, até porque, nos últimos anos, lendas do football como Wayne Rooney ou Gary Neville também não cantavam o hino e o selecionador sublinhou, diversas vezes, o “máximo respeito” pela canção.

Até que chegou o dia do jogo. “Descobri o que se passava de manhã”, disse Carsley.

O que se passava? Um rugir de alguns setores da sociedade britânica contra o treinador. O The Telegraph, jornal conservador, escreveu que Lee “não poderia esperar treinar Inglaterra” se não cantasse o hino, considerando a posição de Carsley “um barril de pólvora à espera de explodir”; o Daily Mail, um tabloide, pediu mesmo a demissão do selecionador, ainda antes da estreia.

Confrontado com a polémica, o treinador confirmou a capacidade para relativizar problemas. “Nunca cantei o hino, mas respeito as opiniões das pessoas. Não me sinto atingindo”, disse o homem que, no Everton, fez uma famosa dupla de médios com Thomas Gravesen, parelha notável pela incrível semelhança física entre ambos.

Para tornar o Irlanda-Inglaterra num duelo ainda mais apimentado, os dois golos dos visitantes foram marcados por Declan Rice e Jack Grealish, jogadores que chegaram a alinhar nas seleções jovens irlandesas.

Antes, durante e depois do encontro, Lee Carsley pareceu sempre alheio à controvérsia. Sem alimentar a polémica, mas também sem se colocar como uma espécie de pai futebolístico da nação, papel que Southgate magistralmente desempenhou, o novo selecionador empenhou-se em ser só… um treinador.

O gosto do treinador em treinar foi logo expresso por Morgan Gibbs-White, médio a quem Carsley deu a estreia em Dublin depois de ambos terem trabalhado juntos nos sub-21. “Ele é um técnico que gosta de meter as mãos na massa”, descreveu o futebolista do Nottingham Forest.

A descrição de Gibbs-White encontrou correspondência nos minutos anteriores ao pontapé inicial na Irlanda. Ao contrário da maioria dos treinadores no futebol de elite atual, Carsley participou ativamente no aquecimento: colocou cones, carregou bolas, distribuiu coletes, atuou em exercícios de posse de bola, andou em disputas corpo a corpo contra os seus futebolistas, enfim, fez todo o trabalho de campo que, frequentemente, se vê em adjuntos.

Carsley, calado, enquanto se cantava o
Carsley, calado, enquanto se cantava o Seb Daly/Getty

A justificação dada pelo antigo internacional irlandês começa, novamente, com um toque de humor discreto: “Bem, sou um técnico qualificado para fazer isto mesmo”, comenta, antes de dar uma justificação mais detalhada das razões que o levam a não abdicar do trabalho de relva.

“Uma das minhas forças é o meu coaching [trabalho como treinador de campo]. É mais uma oportunidade para passar tempo com os meus jogadores. Mesmo quando estamos a aquecer e fazemos um exercício de posse, há um elemento tático incluído, portanto, é importante estar perto deles. Falamos sobre a falta de tempo para treinar nas seleções, então é bom maximizar o tempo que temos”, justificou.

Há aqui, também, um elemento quase filosófico, uma forma de interpretar o cargo de selecionador. Gareth Southgate era um homem que presidia a tudo o que se passava na seleção, começando pela comunicação, assumindo um papel quase de líder político, ocupando espaços deixados vazios por ouras lideranças da nação.

Não obstante, Carsley, depois de muitos anos a trabalhar na estrutura federativa, vê-se como “um treinador principal”. “Não me definiria como um manager. Tenho muitos profissionais à minha volta que tratam de muitos aspetos, permitindo focar-me no que faço melhor, que é treinar no campo”, aponta Lee, que opina que “os dias em que o manager fazia tudo estão no passado”.

O selecionador inglês quererá imitar Luis de la Fuente, outro homem vindo da estrutura de uma federação e que, na equipa principal, conseguiu vencer um grande torneio. Para já, enquanto se mantém num dos bancos mais escrutinados do planeta futebol, o apaixonado pela relva aprenderá uma lição, resumida num artigo do The Guardian:

“Lee Carsley descobre que ser selecionador inglês é sobre muito mais do que apenas treinar.”