Os dias antes dos exames nacionais podem ser emocionalmente complicados. Em pleno fervor da adolescência, acrescentar aquela carga de responsabilidade e nervosismo é como acrescentar picante a uma receita já de si bastante explosiva. É, por isso, normal que haja certas reações inesperadas.

Em 2011, Raphaël Varane era mais um jovem do norte de França que se preparava para os exames finais do secundário, onde estudava economia. Bem, não era propriamente um jovem normal: aquele miúdo conciliava os estudos com as partidas na Ligue 1, onde se estreou com 17 anos e somou, naquela temporada 2010/11, 23 encontros pelo Lens.

Nas vésperas desse exames, Raphaël recebeu uma chamada. Estava ocupado a estudar, mas atendeu. Inicialmente, não percebeu muito bem a conversa que vinha do outro lado da linha, mas reconheceu a voz. Era ele. O rei do futebol francês, o líder da seleção que ele vira a ganhar o Mundial quando tinha 5 anos, o capitão da equipa que admirara a conquistar o Europeu duas voltas ao sol depois. A lenda.

Era Zinedine Zidane quem ligava para interromper o estudo daquele adolescente. Naquela altura, Zizou era uma espécie de conselheiro desportivo de Florentino Pérez e estava a tentar convencer o mais recente prodígio do futebol francês, altamente cobiçado por colossos de toda a Europa, a assinar pelo Real Madrid.

Mas Varane não soube bem lidar com a surpresa. Havia o labirinto da cabeça adolescente, o nervosismo de falar com Zidane, os livros abertos à frente dele… “Desculpe, posso ligar noutra altura? Estou ocupado”, disse o menino à lenda. O irmão de Raphaël, ao saber da resposta, perguntou se o miúdo “estava maluco”.

O primeiro contacto formal entre Varane e os blancos tornar-se-ia, com o passar dos anos, uma anedota. E, também, um símbolo, uma representação de como, para aquela defesa central, tudo chegou cedo, muito cedo. Como propostas do mundo dos adultos vieram em idade escolar. A estreia na Ligue 1 aos 17, a estreia no Real Madrid aos 18, a seleção principal francesa aos 19.

Aos 25 anos, Raphaël já completara, basicamente, o futebol. Naquela idade precoce, a sala de troféus estava a transbordar: quatro Ligas dos Campeões, um Mundial, duas La Liga, três Supertaças Europeias, três Mundiais de Clubes, duas Supertaças de Espanha.

Pouco depois da estreia no Lens, numa das primeiras entrevistas que deu a um jornal local, perguntavam-lhe que característica destacava no seu jogo. “A velocidade”, disse Varane, o elegante central que, quando apareceu, parecia uma gazela perseguindo atacantes, passada larga num corpo alto e esguio.

A mesma velocidade que aplicou numa carreira para quem tudo chegou muito rápido. Também o fim.

Aos 31 anos, a enésima lesão sofrida forçou-o a pendurar as chuteiras. Acabou de assinar pelo Como, da Serie A, mas só fez 23 minutos numa partida da Taça até sofrer um problema físico.

“É com imenso orgulho e um sentimento de dever cumprido que anuncio a minha retirada do jogo que todos amamos. É preciso muita coragem para ouvir o teu coração e o teu instinto. A vontade e a necessidade são duas coisas diferentes”, escreveu, nas redes sociais, o francês, que em agosto se lesionou no joelho.

Quando chegou ao Real Madrid de José Mourinho, Varane parecia quase um central vindo do futuro. Ali estava o defesa moderno, rápido como Usain Bolt, com técnica refinada e um poder de elevação anormal. Na eliminatória da Taça do Rei em 2012/13, frente ao Barcelona, consagrou-se, relegando mesmo Pepe para o banco.

Naquele duplo confronto, o francês impressionou pela facilidade em apanhar adversários que se desmarcavam nas costas da defesa. Deixou o mundo boquiaberto com o seu golo em Camp Nou, quando saltou mais alto do que a trave da baliza culé.

Sem sabermos, nascia, diante dos nossos olhos, o perfil de central que se tornaria mais cobiçado no futebol internacional na década seguinte. O defesa veloz, contundente no ar e com técnica para sair a jogar — isto é, um Varane — tornar-se-ia no cânone a perseguir.

Para Varane, viriam 360 jogos pelo Real Madrid, 93 por França, 22 títulos. Veio a dupla mítica com Sergio Ramos e um 2018 a um nível colossal, sem erros na caminhada para a terceira Liga dos Campeões seguida do Mundial da Rússia cannavaresco, perfeito, com nível de melhor do mundo, seguríssimo a defender e ainda com impacto na área adversária. Foi o pico da sua carreira.

Mas nem tudo foi, sempre, perfeito. O amanhecer do central do futuro em 2013, o mergulho nas águas da glória dos anos seguintes, tudo foi sendo pontuado com um certo tom triste que regularmente lhe foi associado. Em Madrid, criticavam-lhe a incapacidade de liderar a defesa, sendo considerado um acompanhante do líder Ramos, e nunca, verdadeiramente, o seu sucessor no comando da equipa.

Mais do que críticas, foram as lesões que lhe amarguraram o trajeto. Um físico tão perfeito, quase desenhado por deuses para jogar futebol, tinha de vir com um preço a pagar. Foram as lesões, as quais, segundo contas do Transfermarkt, o deixaram ausente dos relvados durante um total de 702 dias desde 2012/13. Só no Manchester United, onde atuou nas derradeiras três épocas, esteve de baixa 219 dias.

Foram os problemas físicos, qual lado B de um corpo aparentemente tão perfeito, que levaram ao fim precoce. O corpo que permitiu a carreira precoce foi o que ditou o fim precoce.

O menino Raphaël nem queria juntar-se a uma equipa à séria quando era criança, preferindo ficar a jogar no jardim com o irmão. Foi o pai, o homem que lhe dá ascendência da Martinica, quem o convenceu a experimentar uma equipa. Varane gostou tanto que passou a “querer jogar sempre”, conta.

E jogou. E ganhou. E sofreu com as lesões. Agora, abre um novo caminho, grato pelo vivido.

"Obrigado, futebol
Com amor, Rapha ❤️ "