“Como assim?” era uma questão plausível, mais do que justa, quando a final ainda não se espreguiçara. De fatiota e t-shirt, aparecia Novak Djokovic, “um dos maiores desportistas mundiais”, anunciava o speaker do Monumental de Buenos Aires, onde surgia o sérvio que 24 horas antes estava no Catar, a ver Fórmula 1, para agora ir ali arcar com o peso do troféu da Libertadores e o depositar no púlpito antes de ir confraternizar com os árbitros para atirar a moeda ao ar entre os capitães. Ser um tenista vestido à civil, com o preto e o branco das duas equipas, destrambelhou a final, atazanou-lhe o juízo e ela, logo aos 40 segundos, não se recompôs.
À segunda bola dividida, Fausto Vera foi com a cabeça onde Gregory afiou os pitons, a sola da chuteira do médio do Botafogo lacerou a face do jogador do Atlético Mineiro, viu-se sangue a escorrer, a cor era a mesma do cartão empunhado pelo árbitro. Nem um minuto de jogo e a equipa de Artur Jorge ficava com menos um jogador. Quando, bem depois, já tinham passado 97 minutos, contudo, era a equipa desfalcada que fazia enlouquecer os seus chorosos adeptos, derramadores de lágrimas de alegria.
Quando tudo acabou, Artur Jorge deixou-se cair de joelhos, levou as mãos à cara e fê-la cair sobre a relva. O seu Botafogo era campeão da América do Sul.
O carinho por competições varia consoante os terráqueos, no Brasil e pelas Américas batizam de ‘Glória Eterna’ a Libertadores, Copa preferida do continente futebolístico pouco tateado por treinadores vindos do lado de cá do charco, súbditos do culto eurocêntrico que impera na bola. Em 2019, quando Jorge Jesus se atirou, sem braçadeiras, para gigante lago do Flamengo e do Maracanã, assoberbando o povo carioca com bom futebol e conquistas, entreabriu a porta que os clubes brasileiros escancararam sem hesitações. Ganhando JJ por lá, terão pensado, outros portugueses poderiam vencer também.
Nestes poucos anos, 18 outros treinadores empacotaram as malas e foram para o Brasil, bastantes tiveram que as refazer pouco depois: Paulo Sousa e Vítor Pereira também experimentaram o rubronegro do Rio de Janeiro; houve Jesualdo Ferreira a espalhar o charme professoral no Santos; António Oliveira chegou com a sua juventude ao Corinthians; o clube de Bragantino vitaminado pelo touro com asas empregou Pedro Caixinha; Petit esteve no Cuiabá e Pepe acabou de subir com o Sport Recife à primeira divisão do país. Pela equipa outrora entregue às pernas tortas angelicais do seu maior ídolo esteve Bruno Lage depois de Luís Castro ir embora. E a essa equipa chegou Artur Jorge no espreguiçar do verão.
Seis meses depois, constatamo-lo em Buenos Aires, num dos anfiteatros do futebol, a conquistar a maior prova de clubes da América do Sul com o Botafogo que recuando a fita há um ano andava a comiserar-se pela penúria na qual se ia afundando.
Este sábado, ao ganhar por 3-1 ao Atlético Mineiro na final da Libertadores, o treinador operou uma das cirurgias futebolísticas mais rejuvenescentes do futebol brasileiro: em 2023, quando já se viam enfeites natalícios nas ruas, o Botafogo perdia pontos a reboque de empates e derrotas para cair da liderança do campeonato e o trambolhão apenas parar no 5.º lugar do Brasileirão, vendo ganhar o Palmeiras de Abel Ferreira que chegara a ter 14 pontos a menos; neste 2024, entra no primeiro dia do mês do Pai Natal a abrir um presente inédito na história do clube que tem Mané Garrincha, Nilton Santos, Didi, Jairzinho ou Túlio Maravilha como referências de chuteiras nos pés.
Na final inteiramente brasileira e jogada no Estádio Monumental, abrigo do River Plate argentino, a equipa de Artur Jorge triunfou com os golos de Luiz Henrique, Alex Telles e Júnior Santos contra o de Eduardo Vargas, único do Atlético Mineiro onde estavam caras conhecidas: o capitão mora nos músculos do trintão Hulk, antigo canhão de remates do FC Porto, à frente de uma defesa onde Rodrigo Battaglia, no seu tempo jogador do Sporting, serviu de central, e no ataque chegaria a aparecer Alan Kardec, ex-Benfica. Nenhum evitou que o ‘Fogão’, poiso de Alex Telles e Tiquinho Soares, ambos ex-dragões, vencesse a Copa Libertadores pela primeira vez.
A partida não teve quaisquer parentes afastados dos contornos épicos, na mesma pitada em que seriam insólitos e traumáticos para o Botafogo, do duelo mais famoso entre os clubes até hoje. Em 1967, empatados ao fim de três jogos numa eliminatória da Taça do Brasil ainda na era sem penáltis, decidiu-se o vencedor com a fortuna de uma moeda ao ar; Décio, capitão do Atlético Mineiro, desatou aos gritos e a celebrar antes dela cair ao chão, o que contagiou jogadores, técnicos, jornalistas e adeptos no estádio do ‘Galo’, num frenesim que alastrou ao juízo do árbitro e se impregnou na sua coragem - daria a vitória ao Atlético, rezam os relatos, sem ver o lado em que caiu a moeda.
À história acrescentar-se-á agora uma temporada igualmente impactante que Artur Jorge vai rubricar, suceda o que doravante vier. Chegado ao Botafogo em abril, Artur Jorge foi o terceiro português contratado por John Textor, empresário norte-americano que se entretém a construir o seu monopólio na bola (além do clube brasileiro, detém o Olympique de Lyon, em França, o Crystal Palace de Inglaterra e o RWD Molenbeek, na Bélgica) e despojou-se da timidez a investir na equipa. Gastou cerca de 50 milhões de euros em jogadores esta época, contra os €16 milhões do Atlético Mineiro, para dar ao técnico uma equipa atrevida a atacar, bem lesta a procurar a baliza com passes para a frente que está na liderança do Brasileirão.
O Botafogo precisa de extrair quatro pontos do par de jornadas que restam para garantir o título e dar uma segunda demão à pintura do nome do português ao panteão do clube, que não é campeão brasileiro desde 1995. O Também ficará no museu do futebol do samba, da afinação na voz de Caetano Veloso e da farofa a acompanhar o feijão, porque só o lendário Santos de Pelé e o imparável Flamengo de Jorge Jesus foram capazes de juntar a Libertadores ao Brasileirão na mesma época. E junta-se à restrita vitrine de titulados treinadores portugueses no equivalente sul-americano à Liga dos Campeões, sucedendo a Jorge Jesus e à ‘sua’ Libertadores, de 2019, e a Abel Ferreira, que conquistou as duas edições seguintes (2020 e 2021).
Nascido em Braga, com passado futebolístico quase por inteiro agarrado à cidade minhota, Artur Jorge deu ao clube da ‘Estrela Solitária’ no emblema, lá cravada porque no antigamente do Clube de Regatas do Botafogo, uma de duas equipas cuja fusão, nos anos 40 do século passado, originou o time atual, os atletas olhavam para o céu quando iam para os treinos de madrugada e avistavam o brilho de Vénus, ou da estrela-d’alva, nome comummente utilizado pelos brasileiros. A alcunha colou, a conquista de Artur Jorge agora também os iluminará.