
Pensar em Roma é pensar em história. Afinal, falamos de um dos maiores centros históricos do mundo ocidental, casa do mítico império romano, que influencia mais as sociedades modernas do que, por vezes, temos noção. Futebolísticamente falando, pensar em Roma é pensar, inevitavelmente, no eterno Francesco Totti.
O antigo internacional transalpino é um caso raro de alguém que dedicou toda a sua vida profissional à mesma instituição, a AS Roma, tornando-se uma lenda viva do clube e da cidade. Não admira que hoje, em pleno 2025, ainda haja referências à sua figura pelas ruas de Roma ou pessoas com camisolas com Totti nas costas. Totti é Roma e Roma é Totti.

Por isso, quisemos perceber este fenómeno, o «Fenómeno Totti» e ninguém melhor para nos falar dele do que alguém que o viu nascer e, mais ainda, crescer. Encontramos Alessio Scarchilli, outro «filho» da cidade da Loba, que fazia parte do plantel da Roma na primeira época que Totti fez parte do plantel principal.
«Recordo-me bem desse tempo, porque era jovem e a juventude é sempre bela. Tanto eu como o Totti éramos dois jovens que amavam o seu próprio clube e estavam a viver um sonho. Ambos estávamos dispostos a ir à baliza, se o treinador dissesse. Era um amor divino. O Francesco era um jovem com muita personalidade. Era tão confiante nas suas capacidades que tinha uma certa arrogância, no bom sentido.»
«Era arrogante em campo, porque sabia que era muito bom, e isso ajudava-o. Há um ano, no verão, que vai passar férias e volta completamente transformado a nível físico. Isso ajudou-o muito. Estava um adulto, fisicamente um atleta de alto nível. Era tecnicamente sobredotado, mas este aspeto físico ajudou-o a ganhar dinâmica e versatilidade dentro de campo», começa por relembrar, em conversa com o zerozero.

«Sempre foi um médio ofensivo, mas com o Spalleti jogou a '9' e com o Zeman jogou a extremo. O Zeman em Itália foi um pioneiro a nível de intensidade, com o seu 4x3x3, e acho que foi fundamental neste crescimento, para se transformar no Totti que nós conhecemos. Não o ajudou só a nível físico, mas também taticamente. Foi um treinador que trabalhava muito a pressão, talvez equiparado ao Gasperini, hoje em dia. A combinação do seu crescimento físico, com o trabalho com Zeman, foi catalisadora para o crescimento como jogador. Depois, o Totti transformou-se num grande campeão e fez uma grande carreira», acrescentou.
Entre o inglês macarrónico de Scarchilli e o nosso italiano de nível semelhante, lá nos vamos entendendo. Alessio fala da Roma com paixão na voz e amor no olhar. Nasceu ali, cresceu ali, estreou-se como profissional ali e também ali viu o amigo Francesco criar um dos maiores legados da história do futebol. Afinal, Totti fez 25 épocas seguidas (!) pelos Giallorossi. Algo impensável nos dias que correm.
«Exemplos como o Maldini, Totti, Del Piero ou Buffon vão ser cada vez mais difíceis de acontecer, porque há muita influência do dinheiro e agentes no futebol moderno e a forma como gerem a carreira dos jogadores. Quem conhece bem o Totti não ficou surpreendido por nunca ter deixado a Roma. Jogar no Real Madrid é algo que faz pensar, mas ele era um rapaz que amava o seu clube, a sua cidade e a sua família. Sentia-se em casa.»
«Não queria sair de casa e da sua zona de conforto e decidiu jogar pela sua família, clube e cidade. Transformar-se num ídolo, ser o número um, do que eventualmente ir para outro contexto, como Madrid, e ter essas incertezas. Há aqui também um aspeto cultural. Os romanos e italianos são muito caseiros e têm algum receio de deixar as suas seguranças. Estão um pouco mais atrasados em relação ao mundo moderno e têm resistência a emigrar», explica o antigo jogador.
Uma vida dedicada à Roma

Fora a formação, Alessio passou cinco temporadas na equipa principal da Roma. Uma «infeliz lesão», que aconteceu «cedo de mais», impediu-o de prolongar-se num nível mais alto do que pretendia, embora se considere um «sortudo» pela carreira que teve. Relembra, de sorriso no rosto, uma das primeiras vezes que defrontou a «sua» Roma, quando estava ao serviço do Torino e marcou o golo do empate por 1-1. Acabou insultado, mas considera isso normal, pela paixão dos adeptos romanos.
«Historicamente, é um clube muito importante. É uma praça muito difícil, no sentido em que os adeptos são muito apaixonados. Algumas estações de rádio falam exclusivamente do clube, 24 horas por dia, todos os dias. Isto causa uma expectativa muito grande e, por vezes, pode condicionar as decisões tomadas. Apesar de ser um clube que, historicamente, ganhou pouco, o perfil de jogador da Roma tem de ser alguém com capacidade mental de lidar com esta pressão», esclarece.

Scarchilli terminou a carreira de jogador em 2006, mas nem por isso se afastou da sua Roma. Desde aí, passou mais de uma década ligado ao clube noutras funções, desde comentador da Roma TV, antigo canal do clube, passando por consultor e, mais recentemente, scout, quando José Mourinho comandou os romanos. Viveu as várias mudanças no clube nas últimas décadas e deixa algumas críticas ao rumo tomado desde a chegada da família Friedkin.
«Com a chegada de James Palotta, um norte-americano, houve um grande investimento ao nível de processos, estruturas e pessoas. O clube ficou mais profissional, mais moderno. Houve o foco em colocar a Roma, ano após anos, na Liga dos Campeões, o que foi feito e trouxe receitas avultadas e maior prestígio. O estatuto internacional cresceu. O clube acabou por ser vendido aos Friedkin, os atuais donos.»
«Inicialmente, fizeram promessas de investimento, de idas constantes à Champions e, eventualmente, ir lutando pelo scudetto, em Itália, mas não estão a ser cumpridas. Por mais que os adeptos sejam apaixonados pelo clube, começa-se a ouvir muitas vozes de contestação em relação aos donos, o pai Dan e o filho Ryan», afirma.
Mas não se fica por aqui.
«A nível de decisões, levantam sérias questões sobre a capacidade de gestão, organização e de ambição dos donos. Começando pela era pós-Mourinho, onde era scout do clube e trabalhava diretamente com o treinador e diretor desportivo. Contrataram um treinador jovem, o Daniele De Rossi, em janeiro e depois, em junho, oferecem um contrato de três anos, dizendo que ia ser um dos pilares do projeto. Contudo, apenas alguns jogos depois foi despedido, depois de um mercado de transferências onde teve mão importante.»
«Isto levanta muitas questões sobre a capacidade de ter estratégia e tomar decisões. Faltou lucidez. Vão buscar o Juric, um treinador que não tinha nada a ver com o estilo de jogo do De Rossi e foi muito criticado, acabando por ser despedido pouco tempo depois», explica.
«Agora, foram buscar um ex-treinador, que estava na reforma. Houve muita gente na estrutura do clube que estava em final de contrato em junho do ano passado e mais de 90 por cento não foi renovada, sem qualquer conversa ou entrevista. Eu tinha 16 anos de Roma, havia gente com mais tempo ainda e fomos deixados ao abandono, sem sequer um obrigado e sem sermos substituídos em muitos casos. Houve o caso do Tiago Pinto, por exemplo, que saiu de diretor desportivo em janeiro e só em junho contrataram um substituto. Os adeptos são muito críticos da gestão do clube», conclui.
Scarchilli «roubou» título a Portugal

A conversa vai longa. Entre Roma e Totti, Scarchilli não resiste a recordar que tem um passado ligado à seleção portuguesa, mais concretamente aos Sub-21. Ficamos curiosos. Questionámos, no alto de algum (assumido) desconhecimento. Alessio sorri e relembra a final do Euro Sub-21 de 1994.
«Vencemos por 1-0, com o primeiro golden goal da história. Chegámos à final um pouco desfalcados, com nomes bastante conhecidos, como o Inzaghi, mas muito jovens. Portugal era favorito, tinha o Rui Costa, Figo, a tal geração de ouro, com Abel Xavier, João V. Pinto, Peixe e Vítor Baía. Eram os campeões mundiais de Sub-20 a jogar a final do Europeu de Sub-21. Foi ótimo termos conseguido ganhar», recorda.
Contudo, deixa rasgados elogios a Portugal e à sua capacidade de produzir talento: «Quero dar os parabéns a Portugal pela forma como trabalham e pela sua cultura futebolística. É um país pequeno, com recursos mais baixos, mas que consegue sempre exportar jogadores e treinadores de grande nível. É um futebol que observo com muita atenção.»