Pedalar 274 quilómetros implica amargura para as pernas e o espírito, corrói alentos, no ciclismo equivale a uma alarvidade tocada na mesma nota que se ouve nos ‘Monumentos’, as cinco maiores corridas de um dia no ciclismo de estrada, todas com extensões similares, que exigem esforços monumentais. O cognome é apropriado. Completar esse tipo de distâncias de uma assentada suga a vida de quem acha boa ideia aventurar-se na missão em duas rodas, implica fazer ouvidos moucos aos gritos do corpo para que se deixem daquilo. No circuito montado na Suíça, pintado por pequenos povoados e prados verdejantes, houve meia dúzia de portugueses a fazê-lo.
Um deles cedo se imiscuiu no pequeno grupo que se aventurou no alcatrão para fugir ao pelotão. A cara, mesmo meio-tapada por largos óculos escuros, era familiar. Nem ao fim de quarenta quilómetros lá estava Rui Oliveira, o nariz e as feições iguais de Paris, o campeão olímpico de pista a fugir à maralha onde estava o seu gémeo Ivo. Cedo também se viu um pequeno cambalacho a afetar a esperança maior de Portugal chegar às medalhas nos Mundiais de estrada: com 218 quilómetros em falta, João Almeida envolveu-se numa queda sem mazelas aparentes, mas que forçosamente o atraso na corrida a par de Pello Bilbao, espanhol que ficou mais mal tratado.
Nem 100 quilómetros volvidos, o mais badalado português abandonava a prova, lastimado e azarado por este 2024 que o guardou perto da sua mira - em agosto, o ciclista de A-dos-Francos já desistira da Vuelta por o bicharoco de covid-19 o infetar. Quando se soube da notícia, o mais aventureiro dos manos Oliveira ainda pedalava na fuga da frente da corrida, mas ainda nem metade da distância havia sido percorrida. Pior ainda, porque afinal e “à partida”, ouviu-se dos comentadores da corrida em contacto com a Federação Portuguesa de Ciclismo, o incidente causou uma lesão no ombro que precipitará o fim da temporada para João Almeida.
Sem sobressaltos de maior, a corrida prosseguiu a lume brando até aos arrabaldes dos 100 quilómetros da meta, longe da sua conclusão, mas o momento escolhido pelo implacável Tadej Pogačar para dar ao pedal. Sem escudeiros eslovenos na roda (Tratnik juntar-se-ia a ele eventualmente, abrandando as pernas para descolar da fuga e esperar pelo conterrâneo), o hoje maior glutão do ciclismo atacou para descolar do pelotão e ir atrás, sozinho, da fuga, com o seu jeito de pedalada de cadência incessante que rebenta com quem sequer pense em tentar ir a reboque.
Sob uma rígida perspetiva da teoria, a estucada de Pogačar era, de certa forma, uma ousadia precoce. Atacar a tanta distância da meta, num circuito com muito de plano e várias subidas, porém curtas, mais amigas da explosão do que da resistência guerreira, poderia ser um apetite talvez demasiado antecipado do esloveno, ainda mais por ter uma mini-sociedade de belgas a trabalharem para Remco Evenepoel no nariz do pelotão quando decidiu acender os foguetes nos pedais.
É sabido que a lógica, além do domínio do compreensível, não pautam a auscultação que se faz ao esloveno.
O tresloucado ímpeto de Tadej Pogačar só fazível na sua cabeça e exequível pelas condições que domina sentado numa bicicleta fez sentido porque era ele, a força indomável do ciclismo atual, a partir neste tipo de missão. Cedo o seu ritmo deixou para trás o seu compatriota, ultrapassou a fuga onde constava o exausto Ivo Oliveira e motivou, a coisa de um quilómetro à retaguarda, Remco a soltar um ataque seu sem frutos, sendo logo apanhado, ou o neerlandês Mathieu Van der Poel a desmiolar-se num erro quiçá vindo da presa, quando subiu um passeio durante uns metros com uma das grupetas que se esfolava para alcançar o esloveno.
Com pouco mais de 50 quilómetros por trilhar, a prova virou um contrarrelógio para Pogačar, mais uma sucessão de pedaladas contra ele próprio (o francês Pavel Sivakov ainda tentou colar-se à sua roda), solitário na grandeza. Entretido com os seus botões, sozinho a galgar estrada, manteve o dueto do irlandês Ben Healy e do letão Toms Skujins a consistentes 35-50 segundos de distância, com os pretendentes de renome ainda mais à margem.
Mathieu Van der Poel seguia com Oscar Onley e, ainda mais para trás, os supostos contendentes de maior - Evenepoel e o seu ouro olímpico, que viraram campeões mundiais do contrarrelógio dias antes, sentiam o calor de Enric Mas, Jai Hindley ou Ben O’Connor a estoirarem-se para tentarem o extraordinário. E o paradeiro de Primož Roglič era desconhecido.
E o formidável, o estupendo, o majestoso e por aí fora se quiséssemos esgotar a adjetivação de capacete posto e pés presos aos pedais, seguiu inalcançável na frente, à caça de mais uma restrita proeza no ciclismo. Ganhando, Pogačar igualaria o feito de Eddiy Merckx e Stephen Roche, juntando a camisola arco-íris no mesmo ano em que reinou no Tour de France e no Giro d’Italia. A cortejar o sobrehumano, o esloveno mais do que habituado estava à solidão quando escalou, pela última vez, a mais íngreme das subidas do circuito, rodeado de gente encavalitada nas margens da estrada, aos gritos por ele ou por outrem, os berros eram indistinguíveis ao contrário das inscrições a fiz no asfalto.
Nessa derradeira subida para destruir pernas, liam-se os nomes alguns ciclistas, mas não muitos. As letras mostravam ‘Remco’, o branco escreveu muitos ‘Küng’, o suíço perdido lá bem para trás, por vezes avistava-se um ‘Hirschi’, o melhor dos helvéticos que estava num dos grupos de perseguição. Os ‘Pogi’ não imperava, não tanto quanto Tadej exercia a sua ditadura no alcatrão. Foram horas dele a ver um vazio cada vez que rodava o pescoço e olhava para a retaguarda, mais de 170 quilómetros que fez até Zurique em que a única companhia seriam as motos, o carro da sua equipa e o povo abeirado à estrada.
Com pouco menos de 20 quilómetros em falta para o desfecho, a cara de Pogačar já denotava sofrimento, o semblante impávido era desfeito, aos poucos houve um, dois, três e quatro segundos fatiados da sua vantagem quando dobrou as tormentas das subidas. Sublime, contudo humano, o esloveno olhou mais vezes para as costas, abriu a boca, mostrou sintomas de sofrimento naturais perante a façanha a que se propunha. Mas não seria na frente que a pulsação da corrida conheceria arritmias.
A nove quilómetros do descanso, Van der Poel tentou dar esticões no grupo de perseguidores, quis descolar de Evenpoel, depois foi Hirshi, cada um a querer zarpar para longe e ir à prata se o ouro equivalente a um arco-íris já não era possível. Foi o australiano Ben O'Connor a ficar com a prata e um sorrateiro ataque, quase no final, de Mathieu Van der Poel a levar o bronze.
Antes deles, ilha em cima de uma bicicleta, surgiu o inóspito melhor ciclista do ano, com certeza um dos melhores da história, a largar o guiador para as mãos lhe irem à cara exausta, escondendo as feições por uns segundos. Pela primeira vez, a Eslovénia teve um campeão mundial de estrada, cortesia do já lendário Tadej Pogačar, o indomável que no meio de quase 200 ciclistas lhe passou pela cabeça atacar a pouco mais de uma centena de quilómetros do destino e acabou a ter sucesso. Mais uma vez, e apenas com 25 anos, ‘Pogi’ quis voar até ao sol que bem conhece. Os seus pedais não derreteram, nem se queimaram.
São imunes à temperatura da grandeza.
Talvez “tenha feito um ataque estúpido”, reconheceria no final, disse que os planos da Eslovénia “eram manter a corrida sob controlo”, não arranjou explicação, como se ousar o estupendo fosse banal, para o que lhe passou pelas ideias. “Não acredito que isto aconteceu.” Eventualmente, chegariam ao ponto de encontro em Zurique os melhores portugueses, Rui Costa em 42.º e Nelson Oliveira no 55.º lugar.