De incongruências, aparentes ou factuais, é feito este mundo. Olha-se para a baliza adversária e no meio dos seus três metros de largura e dois de altura estavam os 195 centímetros do chão à cabeça de Emil Nielsen, confesso tipo “mais distraído” da Dinamarca, rechonchudo nos seus 120 quilos por ter “um metabolismo muito mau”, mas que leva um pé à altura das orelhas como se um elástico ginasta fosse. Na mesma seleção havia um pivô, Emil Bergholt o seu nome, que teve de amassar mais 15 quilos no corpo de modo a ser convocado e se isso significava “comer hambúrgueres quatro vezes por semana, então pronto”. Mas até as contradições enganam.
Portugal ia jogar contra a melhor seleção do planeta, a campeã olímpica, vencedora dos últimos três Mundiais para nem dar azo a discussão ou subjetividades. No fundo, Dinamarca é a maior no andebol, certamente a mais temível também, chegada a este meia-final com uma média de 13 golos - na vantagem com que terminou as vitórias no torneio.
E o relógio ainda nem tinha alcançado os três minutos e já só havia quatro portugueses em campo. Victor Iturriza foi excluído primeiro, castigado pelo agarrão maroto no braço de Mathias Gidsen quando o portento-maior da Dinamarca se preparava para rematar. Kiko Costa sucederia na pena pouquíssimo depois, por a bola lhe bater nas costas, com ele de costas e a recuar, quando os adversários a passaram para a reposição a meio-campo. Por fim aconteceu a Fábio Magalhães por algo que disse ou que fez quando no banco se discutiam os dois minutos aplicados ao mais novo dos Costas, nem ele, um dos mais velhos da seleção, pareceu compreender.
O melhor que se pode retirar deste vórtex foi Portugal ficar a perseguir apenas uma desvantagem de quatro golos quando o calvário dos minutos acabou.
Refeito de ser fatiada aos bocados, a seleção passou pelo que se previa: sofreu. E muito. Era um bico de obra lidar com o esguio ímpeto de Gidsel, melhor marcador do Mundial, um esparguete inquebrável de força a desviar-se dos corpos portugueses que marcava golos e forçava livres de sete metros. Simon Pytlick era a sua sombra, sempre perto para uma combinação. Os dinamarqueses eram vertiginosos a transitar após os golos sofridos, corpos gigantes à velocidade de flechas. O bochechudo Emil Nielsen barrou Pedro Portela nos 7 metros e também Kiko Costa, escolhas menos comuns no tiro ao alvo sem oposição que não o ultrapassaram com o efeito surpresa.
Por norma tão calmo, habitualmente composto nas emoções, Paulo Jorge Pereira pediu um desconto de tempo e foi igual a si próprio, tranquilo a mover peças no quadro tático com o qual pediu aos jogadores para variarem nos movimentos ofensivos. Mas, a fechar a intervenção, saiu-lhe um “vamos!” vindo das profundezas, gritado sem anúncio. Ali a alma a escapar-se. E talvez tenha sido à conta desse sorrateiro bom desvario.
Portugal teve uns 15 minutos seguintes de esplendor à sua maneira e até onde lhe foi possível. Concentrados os dinamarqueses na irmandade da ameaça portuguesa, tão cerrados nas fileiras ao centro para travarem Martim e Kiko, que a seleção vestiu-se de esperta a explorar outras vias. Iturriza e Luís Frade foram serviços no espaço do pivô para marcarem. Houve golos à antiga, com jogadas adormecidas até um passe ser feito para as pontas onde Diogo Branquinho e Pedro Portela marcaram. Nos 7 metros, uma vez rendida à norma, a seleção embalou-se em três golos de António Areia, o especialista a quem nem Nielsen ou o seu suplente conseguiram ler as intenções. Por duas vezes, Portugal ficou a ver a Dinamarca apenas a um golo de distância.
Bastou, porém, o Nielsen enganador no semblante, seguríssimo na não corpórea capacidade de ler os pensamentos dos rematadores, fazer a sua aura telepática ressurgir no jogo para a diferença voltar a engordar - com o magérrimo Gidsen a fazer das suas também. Havia um 20-16 ao intervalo e muitos portugueses havia a perguntarem à internet quem era aquele guarda-redes.
Outro início de metade do jogo trouxe mais uma descida às masmorras do andebol para Portugal. Furibundo pela ousadia de haver um resultado a ser discutido, Mathias Gidsel regressou revoltado, cheio de pequenos trampolins nas sapatilhas, cada passo que dava a projetá-lo para longe de corpos, braços ou blocos. Os golos inaugurais, tão apressados, foram dele. A seleção respondia-lhe com erros na transmissão de bola e esteve quase quatro minutos sem marcar um golo. A diferença passou cedo para seis, estabilizou na meia dúzia, o feito desejado adquiria contornos de miragem à medida que os nórdicos se tornavam mais agressivos na defesa.
A atacar prosseguiram, brutais nas suas catapultas com pernas, a responderem a cada ocasional golo português na mesma medida, logo na ofensiva seguinte, de qualquer maneira ou feitio. Se Gidsel, o provável melhor jogador do mundo, ia por momentos descansar a sua lenda em andamento, havia Pytlick. Ou, por exemplo, Rasmus Lauge, outra marreta dinamarquesa que exigia outros desafios por ser mais um míssil de longo alcance, a disparar de fora dos 9 metros. Cedo a supremacia da Dinamarca alcançou a dezena de golos, tão pouco tardou a ultrapassar essa fasquia.
Eram indiferentes os nomes dinamarqueses que rodavam em campo, o atropelamento era uma linha reta, imutável.
A seleção nacional transfigurou-se sem a bola para tentar de tudo. Defendeu com um homem fora da linha num 5+1, não dando experimentou um 3+3, o insucesso levou-a outras formas de marcações individuais. A dança das tentativas era uma obrigação, uma rendição ao inevitável, não um capricho. E Portugal sofreu, então sim, a bom sofrer, cada vez mais sôfrego perante todas as máquinas necessárias a uma terraplanagem que coincidem a existirem na Dinamarca. Os portugueses tiveram as suas hipóteses, teriam sempre, na cabeça de muita gente tinham muito mais do que as reais e isso é mérito dos jogadores, mas as possibilidades têm um prazo.
Quando a equipa embalada para um quarto Campeonato do Mundo consecutivo tinha deixado a diferença de 10 lá atrás, Paulo Jorge Pereira reconheceu o óbvio. Fez descansar Martim, Kiko, Rui e Luís, jogadores-cartaz desta epopeia grandiosa, esteios de uma das melhores seleções da bola que encaixa em mãos agora de pleno direito, para dar minutos do mais exigente que há a Salvador Salvador em modo de ataque e ao pequenino João Gomes, ao altíssimo Miguel Oliveira, ao corpulento Ricardo Brandão, estes três uns novatos em Mundiais. Já misturados na história, serão eles as sequelas do que a seleção vai deixar na Noruega.
Porque Portugal ainda não é passado. A derrota, pesada e farta, fixou-se nos 40-27, fiel à média do adversário, e foi a terceira meia-final da história da competição com mais golos - todas tiveram a Dinamarca envolvida. E a ganhar, claro. Avistou-se o desalento nos portugueses, cabisbaixos no meio da apoteose de uma arena cheia de dinamarqueses nas bancadas, unidas na chinfrineira que comemorou mais um prémio de melhor em campo para Emil Nielsen, o carrasco rechonchudo que além de resina nas mãos teve um íman debaixo da pele para acumular defesas ao longo da segunda parte. Mas Portugal ainda é presente, sê-lo-á eternamente.
Mais ainda porque, no domingo, às 14h30, vai jogar pelo 3.º lugar bronzeado do Mundial contra a França, mais um brutamontes do andebol.