Há pouco mais de dois anos, Yaroslava Mahuchikh estava escondida numa cave com o marido, enquanto ouvia os relatos angustiantes da invasão russa que, dias antes, os obrigou a sair de casa, em Dnipro, na Ucrânia. Tinha 20 anos. Se treinar foi coisa que não lhe passou pela cabeça naqueles primeiros dias, imaginar que dois anos depois batia o recorde do mundo do salto em altura, em vigor há quase 37 anos, e seria a principal candidata à medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris, seria igualmente surreal.
Mas Mahuchikh herdou a determinação, a força e a firmeza do seu povo. E ganhou asas. Menos de um mês depois, e após uma difícil e arriscada viagem de três dias “com explosões, incêndios e, sob o som dos alarmes antiaéreos”, chegou a Belgrado para competir nos Mundiais de Pista Coberta e, sem usufruir das condições ideias, conquistou o ouro, saltando 2,02m.
“O desporto ajudou-me a enfrentar o desafio desta guerra. Ser uma inspiração para o meu país ajudou-me a concentrar no Campeonato do Mundo de Atletismo em pista coberta, em Belgrado, e a ganhar a medalha de ouro”, assumiu.
De lá para cá a atleta ucraniana que se deu a conhecer ao mundo em Doha, no Catar, onde se tornou a atleta mais jovem de sempre - tinha 17 anos e 226 dias - a vencer uma Diamond League com um salto de 1,96 metros, não parou de surpreender com as suas conquistas: foi bronze em Tóquio 2020 e campeã mundial em Budapeste 2023. Para esses feitos contribuíram algumas mudanças mentais e técnicas.
A viver e a treinar na Alemanha, em 2023, Manuchikh percebeu que tinha de deixar de ler as notícias sobre a guerra antes das competições para conseguir concentrar-se mais e melhor. “É um desafio para mim competir depois de ler as notícias sobre mísseis lançados contra civis”, disse à CNN Sport. “Estou a pensar em quantas pessoas morreram, quantas casas foram destruídas. É difícil.”
A estratégia surtiu efeito e mais nenhuma concorrente conseguiu subir tão alto como a ucraniana, que se iniciou no atletismo por via dos 110m obstáculos, tinha então 11 anos.
Se depressa percebeu que gostava mais do salto em altura, foram precisos alguns anos para descobrir que uma ligeira mudança técnica era o “segredo” que faltava para derrubar o recorde do mundo de 2,09m estabelecido pela búlgara Stefka Kostadinova, 14 anos antes de Mahuchikh ter nascido.
Destemida, mas sem pressa de pertencer à elite dos recordistas, a atleta ucraniana não se deixou intimidar pelo medo da mudança, poucos meses antes dos Jogos de Paris, ao aceitar o desafio lançado pela treinadora, Tetyana Steponova, de encurtar a corrida para compensar a sua maior velocidade quando se aproxima da barra. Logo na primeira tentativa sentiu que tudo se tornava mais fácil e a menos de um mês destes Jogos, bateu por um centímetro o recorde do mundo.
Com o país em guerra, Mahuchikh assumiu o papel de “embaixadora” da Ucrânia, passou a usar sombra azul e amarela nos olhos e aproveita todas as oportunidades para lembrar o sofrimento dos seus compatriotas, por certo recordando-se do próprio pai que recusa sair de Dnipro, mesmo quando a mãe e irmã de Mahuchikh a vão visitar.
“Se eu não fosse atleta a nível internacional, acho que estaria na Ucrânia”, assume. “Mas tenho alguns objetivos e estou a competir pelo meu país. Represento a Ucrânia nas competições; é o meu objetivo, é a minha missão, penso eu.”
Fora da pista, a atleta ucraniana é uma defensora da causa animal. Há quatro anos, adotou um gato de um abrigo em Dnipro e rapidamente este tornou-se no seu melhor amigo. “Também começou a saltar em altura, mas agora vive com os meus pais e engordou um pouco. Já não gosta de saltar, por isso acho que tenho algum trabalho a fazer com ele [risos], disse, numa entrevista ao podcast “Inside Track” da World Athletics. Também gosta de moda e no ano passado chegou a participar na Semana de Moda de Nova Iorque, desfilando para a Puma, mas confessa que não sentiu a mesma adrenalina e emoção que sente quando está em pista.
Em Paris, os olhos vão estar em Yaroslava Mahuchikh. Ela sabe-o, até porque a decisão da World Athletics, antiga Associação Internacional de Federações de Atletismo, de manter os russos e bielorrussos fora dos Jogos Olímpicos, faz com que, entre outros, Mariya Lasitskene, campeã olímpica do salto em altura, esteja ausente.
Yaroslava Mahuchikh aplaudiu a decisão da World Athletics - “Quando vejo atletas russos... vejo todas as cidades destruídas, todas as vidas que foram destruídas pelo povo russo, pela Federação Russa”, confessou -, mas ficou zangada pelo facto do Comité Olímpico Internacional autorizar que outros atletas possam competir sob bandeira neutra.