
«We do not want to be “too successful” and crowd out private payment solutions and financial intermediation. But the digital euro should be “successful enough” and generate sufficient demand by adding value for users.» Panetta, março 2022[1]
Por estes dias, a atenção daqueles que se dedicam aos serviços de pagamento estará principalmente colocada no Regulamento das Transferências Imediatas[2] e na sua implementação, sendo este uma peça chave para concretizar o desígnio europeu que visa tornar as transferências imediatas no “novo normal” dos pagamentos na União Europeia, inicialmente anunciado na Estratégia para os Pagamentos[3], da primeira Comissão Europeia presidida por Ursula Von der Leyen e que, entre outros aspetos, reconheceu o relevo desta União dispor de serviços de pagamento modernos, inovadores e com alcance pan-europeu, que permitam afirmar a sua “autonomia estratégica aberta”.
Contudo, procuraremos aqui trazer à atenção do leitor uma outra inovação, em desenvolvimento, no plano europeu, com potencial para representar uma transformação impactante nos serviços de pagamento neste continente, e que vem sendo impulsionada pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelos Bancos Centrais Nacionais da Área do Euro (que, em conjunto com o próprio BCE, formam o designado Eurosistema): o projeto do Euro Digital.
O que será e para que servirá o Euro Digital?
O Euro Digital pretende vir a ser a moeda digital de banco central (CBDC) da Área do Euro, e constituir uma alternativa ao numerário, isto é, à representação física do dinheiro. De acordo com as opções definidas pelo Eurosistema, esta moeda digital estará disponível para realizar a generalidade dos pagamentos digitais de retalho na Área do Euro, ou seja, será diretamente acessível aos consumidores e as empresas europeias. Aos prestadores de serviços de pagamento (categoria que inclui os bancos), caberá proceder à distribuição do Euro Digital, assegurando uma função de intermediação junto dos utilizadores.
Em campanhas de comunicação sobre o projeto do Euro Digital, promovidas pelos seus impulsionadores públicos, têm sido destacadas algumas das características previstas para esta moeda digital e que serão mais apelativas para os potenciais utilizadores, como a segurança associada ao dinheiro de banco central, a gratuitidade para o utilizador de “serviços básicos” e a diversidade das opções que estarão ao dispor, quanto às formas de utilização, incluindo versões para a sua utilização online e offline.
Mostrando-se conceptualmente inserido num domínio de atuação das autoridades monetárias emissoras de moeda, o Euro Digital teve um apropriado início de discussão pública, através de um Relatório, publicado pelo Eurosistema, em outubro de 2020.
No campo das principais motivações, indicadas pelas autoridades monetárias da Área do Euro, para lançarem a discussão sobre uma CBDC europeia, haverá que assinalar alguma coincidência com os objetivos estratégicos definidos, pelas mesmas autoridades europeias, para as transferências imediatas, como no caso dos objetivos de promoção da inovação, da digitalização e da independência europeia nos pagamentos. Outras metas afiguram-se mais específicas do Euro Digital, como a preservação da circulação do dinheiro de banco central na Área do Euro, face ao surgimento e afirmação das criptomoedas e ao papel cada vez mais relevante das designadas “BigTechs” (grandes empresas tecnológicas) na oferta de soluções de pagamento, e mesmo perante a possibilidade de surgirem CBDCs de moedas estrangeiras, fora da Área do Euro, que se posicionem como alternativas atrativas à utilização da moeda única europeia, nos casos de uso em que as CBDCs podem apresentar vantagens (por exemplo, pela perceção de segurança acrescida que uma moeda digital apoiada por um banco central pode oferecer, por comparação com outras soluções apresentadas por atores privados, como será o caso das denominadas “stablecoins”).
Refira-se, ainda assim, que várias das designadas “BigTechs” já têm presença na prestação de serviços de pagamento na União Europeia, pelo que não será de excluir que considerem uma CBDC europeia como uma oportunidade para alavancarem as suas tradicionais vantagens, face aos restantes prestadores de serviços de pagamento, como o acesso a uma base de utilizadores muito alargada ou as competências especificas dessas entidades no tratamento dos dados dos utilizadores.
Face a uma economia mundial globalizada e cada vez mais digital, o Bank for International Settlements (BIS) estimava, em 2021, que 86% dos bancos centrais estavam a estudar o potencial das CBDCs; cerca de 60% destes estavam a realizar experimentação com a tecnologia; e 14% dos bancos centrais já estariam numa fase mais avançada, dos projetos piloto. Desde então, o interesse ter-se-á mantido, com um número significativo de países a dedicarem recursos ao estudo ou mesmo ao desenvolvimento de uma CBDC.
Com potencial de particular relevo para a economia mundial, destaca-se o conhecido projeto piloto do Yuan Digital, já em curso em diversas regiões da China. São também conhecidas discussões sobre a emissão de CBDCs noutros Países, com outras moedas relevantes para a economia mundial, envolvendo os respetivos Bancos Centrais, como serão os casos dos estudos sobre o dólar digital, a libra esterlina digital ou mesmo o projeto de CBDC brasileira, o real digital, este último já em fase de projeto piloto[4], para referir apenas alguns exemplos.
Contudo, para lá desta breve nota sobre o contexto mais abrangente e um possível posicionamento das CBDCs como instrumentos de promoção da competitividade das moedas de algumas das principais economias mundiais, pretende-se aqui centrar a análise no projeto do Euro Digital.
Assim, concluímos, neste ponto, que o Euro Digital pretende vir a ser uma versão digital da moeda única europeia, tendo como autoridade emissora o BCE e o Eurosistema, e que servirá como meio de pagamento digital, disponível para cidadãos e empresas, em toda a Área do Euro.
Em que fase se encontra o projeto do Euro Digital
Para melhor compreender o projeto do Euro Digital, importa abordar, ainda que de forma sintética, a complexidade dos trabalhos de investigação e preparação desenvolvidos, pelas autoridades monetárias europeias, que têm ficado espelhados na produção de extensa documentação técnica, publicada pelo BCE, de entre a qual destacaríamos os relatórios periódicos de progresso do projeto do Euro Digital, que estão acessíveis ao público no sítio da internet do BCE, e a auscultação que vem sendo realizada às diversas partes interessadas, incluindo o sector bancário.
Após o lançamento da discussão inicial sobre o projeto do Euro Digital, em outubro de 2020, o BCE conduziu uma fase de pré-projeto do Euro Digital, que durou até julho de 2021. Durante esse período, o BCE aprofundou as análises iniciais realizadas, recolheu contributos de potenciais partes interessadas e conduziu alguma experimentação, culminando numa decisão formal de iniciar o projeto do Euro Digital, adotada em julho de 2021, pelo Conselho de Governadores do BCE.
Seguiu-se uma fase de investigação, que teve uma duração de, sensivelmente, vinte e quatro meses (decorridos entre 1 de outubro de 2021 e 18 de outubro de 2023) e que permitiu ao BCE definir um desenho de alto nível e os correspondentes requisitos do Euro Digital, incluindo, entre os aspetos mais relevantes, os modelos de distribuição e liquidação, a previsão de serviços básicos, opcionais e de valor acrescentado, o amplo leque de casos de uso a incluir, as principais funcionalidades do Euro Digital e o papel a desempenhar pelos prestadores de serviços de pagamento, enquanto entidades autorizadas a distribuir o Euro Digital junto dos utilizadores seus clientes. O Eurosistema definiu que pretende preservar a intermediação do Euro Digital, mediante a respetiva distribuição, através dos prestadores de serviços de pagamento.
Nessa fase de investigação, ficou igualmente identificada a necessidade de prever limites à detenção do Euro Digital, para evitar que esta moeda digital assuma contornos de investimento, junto dos seus utilizadores, ao invés do almejado meio de pagamento com características de uma versão digital do numerário.
Face às análises já realizadas, tanto pelo sector público como pelo privado, o estabelecimento de limites de detenção afigura-se crucial para mitigar impactos do Euro Digital na estabilidade financeira, considerando o potencial de conversão de depósitos bancários em Euro Digital. Importa ainda que esses limites de detenção sejam robustos e estejam sujeitos a uma governance adequada, com a certeza e segurança indispensáveis, mesmo em momentos de hipotética crise financeira.
Estão a ser conduzidos novos estudos, no sentido de encontrar a calibração adequada para os limites de detenção do Euro Digital, tendo presente os objetivos concorrentes de assegurar a usabilidade do Euro Digital como meio de pagamento, a efetividade das políticas monetárias e a não menos relevante estabilidade financeira.
Em novembro de 2023, o BCE deu início a uma nova fase de preparação do Euro Digital, que tem como objetivo desenvolver as condições de base para uma futura emissão do Euro Digital. Na primeira parte desta nova fase, em que nos encontramos atualmente, deverão ser finalizados os trabalhos sobre o conjunto de regras técnicas a adotar pelos prestadores de serviços de pagamento na disponibilização do Euro Digital aos seus clientes. Espera-se que essas regras abarquem áreas como a definição do modelo funcional e operacional do Euro Digital, o modelo de adesão dos prestadores de serviços de pagamento, os seus requisitos técnicos, os requisitos de gestão de risco e as respetivas regras de governação.
Na mesma fase de preparação, serão selecionados fornecedores para desenvolver uma plataforma e a infraestrutura do euro digital. Neste âmbito, importa realçar que o BCE já lançou procedimentos de seleção de fornecedores de soluções e serviços, com valores potenciais de despesa estimada superiores a mil milhões de euros, aspeto, por si só, esclarecedor quanto ao grau de compromisso das autoridades monetárias europeias com este projeto.
Nos próximos meses, o BCE tem previsto a publicação de uma nova versão, revista e melhorada, do conjunto de regras do Euro Digital, continuar as auscultações de partes interessadas no projeto, assim como dar sequência à comunicação e divulgação do Euro Digital junto do público.
A conclusão da atual primeira parte da fase de preparação do projeto está prevista para outubro de 2025, prevendo-se que se seguirá uma segunda parte, da mesma fase, direcionada ao desenvolvimento das componentes da infraestrutura do Euro Digital e ao lançamento de projetos-piloto.
E a seguir? Quando estará o Euro Digital disponível de forma generalizada na Área do Euro?
As autoridades europeias não tornaram pública, até ao momento, uma estimativa concreta para o lançamento do Euro Digital.
Contudo, no início de 2021 a Senhora Christine Lagarde manifestava o desejo de que o Euro Digital pudesse ser uma realidade num prazo de cinco anos[5]. Esse prazo, então avançado pela responsável máxima do BCE, parecerá, porventura, já difícil de se concretizar, tendo em conta o tempo remanescente e os desafios ainda existentes (no plano técnico e do respetivo quadro legal), para além dos desafios de implementação que se colocam a seguir.
Para além da prévia verificação de todas as condições técnicas e de infraestrutura necessárias, a emissão do Euro Digital não deve ter uma luz verde antes de se dispor de um Regulamento do Euro Digital, aprovado e publicado pelos legisladores europeus. Assim, o Euro Digital pode ainda, em teoria, não vir a concretizar-se tão cedo.
Noutra perspetiva, porventura, haverá, aqui, uma janela temporal que se abre, para os prestadores de serviços de pagamento consolidarem as suas ofertas aos utilizadores de serviços de pagamento, dotando esses serviços e as soluções “privadas” de características ainda mais apelativas para os utilizadores, como ao nível da conveniência (por exemplo, proporcionada pelas transferências imediatas) e inovação, e que permitam preparar os prestadores para os desafios colocados pelo Euro Digital na sua atividade.
O que inclui a proposta do Regulamento do Euro Digital?
A Comissão Europeia decidiu acompanhar a iniciativa do BCE e do Eurosistema, pelo que apresentou, em junho de 2023, uma proposta de Regulamento do Euro Digital[6] (o Regulamento), que está presentemente a ser discutida pelos legisladores europeus, ou seja, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia.
O Regulamento é bastante completo e abrangente, definindo opções e soluções sobre matérias tão variadas como a instituição de “curso legal” do Euro Digital, os seus modelos de distribuição e principais características técnicas, os limites de detenção, o modelo de compensação dos prestadores de serviços de pagamento ou quanto à aplicação das regras de privacidade e de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo ao Euro Digital.
Analisemos alguns dos destaques da versão conhecida do Regulamento, não deixando de sinalizar que o texto final poderá vir a apresentar alterações face ao referido neste ponto, em função do trabalho em curso dos colegisladores europeus.
Em primeiro lugar, o Regulamento consagra a atribuição de “curso legal” ao euro digital, o que significa, na prática, que este será, em regra, de aceitação obrigatória e pelo seu valor nominal, por parte dos beneficiários, para satisfazer pagamentos na Área do Euro. Por exemplo, um comerciante português deve proporcionar aos seus clientes, da Área do Euro, a possibilidade de realizarem o pagamento das compras realizadas, nas suas lojas físicas ou online, com recurso ao Euro Digital. À partida, serão apenas consagradas algumas exceções a essa obrigatoriedade de aceitação do Euro Digital, como no caso das microempresas que não aceitem meios de pagamento comparáveis ou dos pagamentos realizados aos indivíduos, fora do seu contexto profissional. O Euro Digital será também munido de conversibilidade “ao par” com o Euro em numerário.
Na definição de utilizadores elegíveis do Euro Digital, o Regulamento inclui os indivíduos (pessoas singulares) e as empresas (e outras pessoas coletivas) residentes na Área do Euro, assim como os respetivos visitantes.
São previstas regras sobre a distribuição do Euro Digital pelos prestadores de serviços de pagamento, incluindo mecanismos de provisionamento do Euro Digital funding / defunding (“financiamento / desfinanciamento”), através das contas de depósito dos utilizadores junto dos prestadores. O Regulamento prevê, ainda, a obrigatoriedade dos serviços básicos de pagamento em Euro Digital (definidos em anexo ao Regulamento, e que incluem, por exemplo, a disponibilização de um instrumento de pagamento eletrónico), serem gratuitos para os utilizadores individuais.
Para prevenir a utilização do Euro Digital como reserva de valor, o Regulamento estabelece que devem ser definidos limites à detenção pelos seus utilizadores e que estes não terão direito a qualquer remuneração por parte do BCE.
Fica previsto um modelo de compensação dos prestadores de serviços de pagamento suportado na cobrança de taxas de serviço aos comerciantes e interbancárias, ainda assim, com condições e limites a definir (atualmente em discussão), justificados, no texto da proposta, com a necessidade de assegurar a competitividade do Euro Digital como meio de pagamento, face às opções existentes quanto aos meios de pagamento digitais privados comparáveis.
Na mesma linha de racional, o Regulamento procede à especificação de diversas funcionalidades a disponibilizar, nomeadamente a possibilidade de uma utilização online e offline, regras quanto às soluções de front-end (“interface com o cliente”), incluindo a previsão da interoperabilidade do Euro Digital com as futuras carteiras de identidade digitais europeias ou a necessidade de se estabelecerem garantias de acessibilidade e mecanismos de portabilidade, a conferir pelos prestadores de serviços de pagamentos aos utilizadores.
A proposta de Regulamento expressa ainda uma preocupação do legislador europeu quanto à instituição de salvaguardas dos utilizadores, no tratamento dos dados dos pagamentos realizados com recurso ao Euro Digital. Essas garantias de privacidade são um ponto considerado particularmente relevante para os potenciais utilizadores, como tem ficado evidenciado nas consultas e discussões públicas sobre o Regulamento.
Finalmente, em matéria de prevenção do branqueamento de capitais, a proposta de Regulamento inclui um regime específico para as transações offline com o Euro Digital, que permita conferir a esses pagamentos um nível de privacidade reforçado, para o utilizador, ficando, por outro lado, estabelecida a necessidade de definir limites para as transações com essas características.
O exposto, quanto às características destacadas do quadro previsto no Regulamento, faz-nos recordar o que anteriormente disse um alto responsável do BCE. Está em causa encontrar uma receita final para o Euro Digital, que permita cumprir os objetivos definidos, mas sem dar azo a uma canibalização das outras soluções de pagamento, oferecidas por prestadores de serviços de pagamento (por exemplo, as transferências imediatas), que impeça o desenvolvimento dessas alternativas, em condições equilibradas, e que prejudique a recuperação dos respetivos custos de investimento exigidos.
Do lado da oferta dos serviços de pagamento, têm sido expressas algumas preocupações e apresentadas diversas propostas para as endereçar, no âmbito do diálogo com as autoridades responsáveis. Admitindo-se que esses contactos têm sido profícuos, aspetos relevantes estão ainda em aberto, pelo que será prematuro ensaiar qualquer balanço dos requisitos finais, de índole legislativa, mas também técnica, deste projeto.
O Regulamento está sujeito ao processo legislativo de codecisão europeu, que requer a intervenção do Parlamento Europeu, assim como do Conselho da União. O Parlamento Europeu retoma os trabalhos de apreciação do Regulamento, tendo como suporte um projeto de relatório que não foi concluído na anterior legislatura europeia, enquanto o Conselho, sendo conduzido pelas Presidências de Estados-membros em sistema rotativo de seis meses, estará sob a Presidência Polaca, no primeiro semestre de 2025, que deve também dar sequência às discussões deste dossier legislativo, com base em relatórios de progresso produzidos pelas Presidências anteriores.
Como tem o sector bancário acompanhado o projeto do Euro Digital?
Apesar de a própria natureza do Euro Digital determinar que a condução das reflexões e trabalhos está primordialmente do lado dos atores públicos – BCE, bancos centrais da Área do Euro e legisladores europeus -, o sector bancário português considerou este projeto como sendo de grande relevância, logo desde o momento da publicação do relatório inicial do BCE, em outubro de 2020, face aos desafios que envolve para o sector bancário, mas também tendo em conta o seu potencial de inovação, e adotou uma atitude construtiva e dialogante com as autoridades envolvidas no projeto, identificando preocupações do sector e aspetos-chave merecedores de análise e discussão aprofundada. Idêntica postura foi também adotada ao nível das organizações representativas do sector bancário, no plano europeu.
Nesta linha, o sector bancário tem procurado participar ativamente e de forma colaborativa, nas reflexões relacionadas com o projeto do Euro Digital, que vão sendo lançadas pelas autoridades nacionais e europeias, de acordo com o programa e calendário por estas definido, tendo essa postura cooperante assumido diversas formas, nomeadamente através das participações em consultas públicas ou consultas dirigidas a partes interessadas, realizadas pelo BCE e pela Comissão Europeia, assim como através do envolvimento de representantes do sector nos grupos de trabalho e fóruns deste projeto, no plano nacional, nos trabalhos promovidos pelo Banco de Portugal, mas também no plano europeu, destacando-se, neste caso, os trabalhos sobre o euro digital desenvolvidos no Euro Retail Payments Board (ERPB) do BCE.
Quais são os principais desafios colocados ao sector bancário pelo Euro Digital?
Na perspetiva do sector bancário, têm sido indicados três principais planos de desafios, mais relacionados com o desenho do Euro Digital, que carecem de soluções adequadas e devidamente calibradas.
Em primeiro lugar, é necessário salvaguardar os impactos do Euro Digital na estabilidade financeira, decorrentes das potenciais perdas de depósitos bancários e do possível incremento dos custos de financiamento dos bancos. As soluções recomendadas podem passar por consagrar limites de detenção robustos para o Euro Digital e pela disponibilização de fontes de financiamento alternativas, em condições equiparáveis aos depósitos bancários, por parte do BCE.
Em segundo lugar, é necessário viabilizar um modelo de negócio adequado para os prestadores de serviços de pagamento responsáveis pela distribuição do Euro Digital, que considere os diferentes intervenientes na cadeia e os respetivos contributos e benefícios obtidos, sejam comerciantes, utilizadores ou prestadores de serviços, de forma a assegurar um compromisso duradouro com a prestação de serviços de pagamento de qualidade e inovadores.
Em terceiro lugar, é necessário assegurar a preservação do papel e do know-how dos bancos, no relacionamento com os cidadãos e as empresas europeias, adotando soluções de desenho do Euro Digital que não afetem o “level playing field” (as condições equitativas), do Euro Digital, vis-a-vis as restantes soluções privadas, nomeadamente quanto aos referidos campos da distribuição do Euro Digital, do modelo de compensação ou das regras de prevenção de branqueamento de capitais e da proteção de dados aplicáveis, de forma a prevenir uma disrupção dessas soluções privadas.
Que oportunidades e que papel pode caber ao sector bancário?
Importa começar por reforçar qual o ponto de partida. Os cidadãos e as empresas nacionais contam com soluções de pagamento que satisfazem, de forma eficaz e eficiente, a generalidade das suas necessidades, nas diversas modalidades de pagamentos de retalho, presenciais e à distância, e que são suportadas por prestadores de pagamento, bancários e não bancários, inseridos num ecossistema dinâmico, diversificado e inovador.
Ainda assim, se for adequadamente desenhado e implementado, o Euro Digital poderá constituir uma componente adicional, complementar e criadora de valor, inserida no vasto universo, nacional e europeu, dos serviços de pagamento.
Nas respostas às consultas públicas realizadas pelas autoridades europeias, o sector bancário nacional teve oportunidade de assinalar o potencial do Euro Digital em matérias relacionadas com a inovação e a digitalização dos serviços de pagamentos, designadamente para o desenvolvimento de pagamentos programáveis, de pagamentos no âmbito da IoT – “Internet of Things” (internet das coisas) ou dos pagamentos com recurso a tecnologias DLT.
Cumpre destacar dois aspetos, identificados como sendo relevantes para que esse potencial se materialize. Como primeiro aspeto, será determinante o aproveitamento das infraestruturas de pagamentos existentes e uma adequada inserção do Euro Digital nas mesmas, que permita facilitar a respetiva interoperabilidade com a restante oferta de pagamentos e respetivas infraestruturas, e assim assegure a sua atratividade para todos os elos da cadeia de pagamentos, incluindo para prestadores de serviços de pagamento e comerciantes.
Um segundo aspeto a assinalar, dirá respeito à configuração final do Regulamento do Euro Digital, uma vez que influenciará, de forma decisiva, a ambição desta moeda em matéria de inovação, pelo que estará nas mãos do legislador europeu tomar as opções que, embora promovam uma salvaguarda robusta da estabilidade financeira, confiram adequado espaço aos prestadores de serviços privados, em particular aos bancos, para estes gizarem, desenvolverem e implementarem casos de uso do Euro Digital mais inovadores, que permitam ir além dos chamados “serviços básicos”. Pensemos, por exemplo, em soluções potencialmente concorrentes com realidades tão dinâmicas como as criptomoedas, mas oferendo a segurança acrescida do dinheiro de banco central.
Numa síntese possível, neste momento interlocutório, a destacar os seguintes pontos
Começámos por referir que as atenções dos prestadores de serviços de pagamentos estão centradas, nos próximos meses, na implementação do Regulamento das Transferências Imediatas e na realização do lema europeu de tornar essas transferências no “novo normal” dos pagamentos, na Área do Euro.
Não obstante, as prioridades definidas pelas autoridades europeias incluem, igualmente, o projeto do Euro Digital, em cuja consecução estão significativa e consistentemente empenhadas, com destaque para o próprio BCE e o Eurosistema.
Os objetivos definidos pelas autoridades passam por criar todas as condições para viabilizar a introdução de uma moeda digital de banco central, da Área do Euro, que constitua uma alternativa digital, com características comparáveis ao numerário e disponível para utilização pelos clientes de retalho dos prestadores de serviços de pagamento.
Alguns dos objetivos do Euro Digital poderão ser semelhantes aos que justificam a promoção europeia das transferências imediatas, nomeadamente a afirmação da soberania estratégica europeia na realização dos pagamentos pan-europeus. Ter claro como é que ambas as iniciativas se podem manter compatíveis e sustentáveis, para os prestadores de serviços de pagamento, será um ponto que se espera merecedor de atenção, por parte das autoridades.
O sector bancário tem adotado uma abordagem construtiva e dialogante, refletida no envolvimento em consultas das autoridades nacionais e europeias, tanto relacionadas com o plano legislativo como técnico do projeto.
No extenso trabalho de investigação e preparação, que vem sendo conduzido pelo BCE e Eurosistema desde 2020, ficaram já definidas características de desenho e de requisitos, demonstrativas dos impactos que o lançamento do Euro Digital – se acontecer e quando acontecer (não se dispondo de indicações noutro sentido) -, poderá vir a ter nos pagamentos europeus.
Embora não seja conhecido um prazo concreto e, em grande medida, essa decisão dependa do momento em que a proposta de Regulamento do Euro Digital esteja concluída e publicada, as principais características pretendidas, pelas autoridades monetárias da Área do Euro, para o projeto do Euro Digital, encontraram eco na iniciativa legislativa da Comissão Europeia.
As características nucleares do desenho do Euro Digital incluem a preservação da função dos intermediários, na sua distribuição aos utilizadores, embora estes possam ser bancos ou outros prestadores de serviços de pagamento. O Euro Digital será dotado de aceitação obrigatória para a realização de pagamentos na Área do Euro, num conjunto alargado de situações, incluindo pagamentos online ou offline, a que acresce que os designados “serviços básicos”, terão de ser prestados de forma gratuita aos utilizadores que sejam pessoas singulares.
O modelo de compensação proposto pelo legislador europeu assenta na cobrança de taxas de serviço aos comerciantes e interbancárias, ainda assim com limites para as mesmas, cujo desenho está também em equação e será crítico para assegurar a sustentabilidade dos modelos de negócios dos prestadores de serviços de pagamento.
Está também a ser analisado o estabelecimento de limites à detenção do Euro Digital, pelos seus utilizadores, que evitem uma utilização para finalidades de investimento, e não apenas de meio de pagamento digital. Esses limites afiguram-se igualmente decisivos para mitigar impactos do Euro Digital na estabilidade financeira e na transmissão da política monetária de banco central.
Ao nível do desenvolvimento das regras técnicas do Euro Digital, têm decorrido intensos trabalhos, conduzidos pelo BCE, com grau de desenvolvimento e definição de regras impositivas superior ao habitualmente conhecido nas atividades de standardização de regras de pagamentos, nomeadamente nos pagamentos SEPA. Como a digitalização terá de estar de mãos dadas com a inovação, espera-se que este seja outro aspeto em que ainda haja margem para evolução, eventualmente por influência do legislador europeu.
Deveremos estar próximos do início do desenvolvimento da uma plataforma e da infraestrutura do Euro Digital, sendo esse um passo já anunciado pelo BCE que lançou procedimentos para selecionar os respetivos fornecedores. Importa assegurar que estas infraestruturas sejam compatíveis e procedam ao reaproveitamento das existentes, para os meios de pagamento digitais.
Na perspetiva de diversas partes interessadas, mas com particular ênfase do lado da potencial procura, tem sido também afirmada a importância de o Euro Digital assegurar a privacidade dos utilizadores. A afinação desejada, nesta matéria, deve assegurar que a característica de moeda de banco central não implique um nível de intrusão desproporcionado, por parte das autoridades públicas, consagrando solução na linha do disponível para os meios de pagamento comparáveis.
Por último, procurámos apresentar destaques das preocupações e questões colocadas, quanto ao projeto do Euro Digital, esperando-se que possam ser resolvidas e esclarecidas, pelas autoridades europeias, através do diálogo produtivo com os prestadores de serviços de pagamento e outras partes interessadas, antes de ser tomada qualquer decisão, sobre a emissão do Euro Digital, tendo presente o que está em jogo para os pagamentos europeus, e a necessidade de mitigar previamente potencias impactos negativos desse projeto e de criar condições que permitam materializar os impactos positivos pretendidos.
[1] Citação extraída do “Introductory statement” de Fabio Panetta, na qualidade de Membro da Comissão Executiva do Banco Central Europeu, na audição perante a Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu, em Bruxelas, no dia 30 de março de 2022.
[2] Regulamento (UE) 2024/886 do Parlamento Europeu e do Conselho.
[3] Comunicação – COM(2020) 592 final – da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 24 de setembro de 2020.
[4] Projeto de moeda brasileira digital (DREX), do Banco Central do Brasil.
[5] https://www.rfi.fr/en/business-and-tech/20210113-digital-euro-could-happen-within-five-years-lagarde
[6] Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à criação do euro digital – COM(2023) 369 final.
Artigo escrito por João Pires e publicado originalmente na Revista InforBanca.