A instabilidade geopolítica e uma eventual fragmentação regulatória poderão transformar o panorama das instituições financeiras globais, alerta Rita Costa, sócia e líder de Serviços Financeiros da EY. “Se a geopolítica continuar a desfragmentar, vai ser penalizador para o mundo e para os investidores”, refere, destacando que regulamentações diferentes em cada país dificultam a competitividade das instituições financeiras.

Além da questão regulatória, o setor enfrenta também desafios relacionados com a qualidade dos dados num mundo cada vez mais digital, onde informações fiáveis são necessárias para avaliar riscos e oferecer serviços personalizados. Um desafio que ensombra sobretudo a banca tradicional.

De olhos postos no futuro, Rita Costa sublinha ainda, em entrevista ao Jornal PT50, que as fintechs e as big techs estão a pressionar a banca tradicional para inovar nos produtos e serviços que oferece. “As novas gerações não querem só crédito à habitação, valorizam a flexibilidade e a mobilidade”, observa, apontando a necessidade de criar soluções inovadoras que façam sentido para os jovens.

O mundo está a tornar-se mais complexo, com novas dinâmicas geopolíticas a fragmentar a ordem mundial. Como é que estas mudanças estão a afetar o setor bancário?
A regulamentação é uma grande preocupação, porque estávamos a caminhar para um mundo cada vez mais global, mas a geopolítica está a fragmentar. E para instituições financeiras globais isto é um desafio gigante, porque aumenta os riscos, aumenta a complexidade e aumenta os custos. Um banco nos Estados Unidos com uma sucursal na China e outra na Europa, para fazer o reporte consolidado, no limite tem de ter três cenários regulamentares. Então, se a geopolítica continuar a desfragmentar, vai ser penalizador para o mundo e para os investidores, porque as instituições financeiras ficam menos competitivas, porque mais fragmentadas por conta da regulamentação.

Mas atualmente a regulamentação já é diferente na China e na Europa.
Sim, mas o que foi adotado por um HSBC, por um Lloyd’s, ou por um Santander, foi exercer a regulamentação dos ‘headquarters’ e os outros países aceitaram. Portanto, harmonizam no consolidado com a regulamentação da sede. Agora, se a geopolítica exigir que isto se fragmente, então aumentamos a complexidade, os custos e os riscos.

É esse o grande desafio desta ‘desglobalização’?
É um bocadinho. Porque uma das coisas que a globalização fazia era eu saber que, se quisesse investir, o Banco A ou o Banco B, ao terem a mesma regulamentação, a métrica de um Return On Investment, por exemplo, era feita da mesma forma. Então eu podia comparar todos. A desfragmentação vai impedir a comparação.

E onde é que está a quebrar mais? É nos Estados Unidos?
Nós somos assessorados por advisors políticos e a perceção que se tem é que as mudanças estruturais nos Estados Unidos, em termos de regulamentação, não serão alvo de disrupção, apesar de poder acontecer. Porque a forma como os Estados Unidos estão montados, com a Câmara dos Representantes e com o Senado, é exigido uma determinada maioria para situações estruturais, e a regulamentação é uma delas. O que se acha é que nunca se vai ter a maioria para desregulamentar.

Está muito confiante.
Isto é uma visão otimista, por isso, há o cenário de risco em que esta desfragmentação pode levar ao aumento dos custos, da complexidade e a uma menor competitividade, que depois no limite afeta os consumidores.

No caso do Basileia, os Estados Unidos, não estão com muita vontade de o aplicar, sobretudo alguns critérios relativos à retenção de capitais próprios. Acha que há risco de não se evoluir para a adoção do Basileia a nível global?
A adoção a nível global vai sempre existir, os estágios é que podem ser diferentes. Ou seja, os Estados Unidos ficarem no Basileia III e a Europa evoluir para o IV. Mas nunca podemos olhar só para o médio prazo de três ou quaro anos, portanto, a regulamentação olha um bocadinho mais para a frente. O importante é conseguirmos ter uma harmonia das entidades globais, porque senão aí é que se desfragmenta tudo e voltamos para trás.

Nota que os bancos estão a mudar algumas estratégias para fazer face a esta possibilidade de desfragmentação a nível regulamentar?
Hoje em dia os bancos são obrigados a fazerem os chamados ‘stress- tests’, em que eles próprios já estão a pôr este cenário. E só o facto de colocarem o cenário já mostra essa preocupação. Agora ainda é um risco pouco plausível, mas daqui a uns meses pode subir na hierarquia de probabilidades. Outra questão que está a acontecer é o Reino Unido estar muito mais firme do que a Europa.

Em que sentido?
Não se fala em desregulamentação. E como o Reino Unido tem grandes instituições financeiras, há esperança de que se consiga manter algum equilíbrio. Não obstante, o que pode afetar também as instituições financeiras são as próprias tarifas do comércio e a forma como as empresas financiam ou investem. Portanto, nas instituições financeiras, a geopolítica tem este lado de regulamentação que pode desregulamentar. E também tem o impacto do lado comercial, e esse aí tem mais probabilidade de acontecer.

Que recomendações dão aos bancos para mitigarem os riscos que estas tarifas podem acarretar?
Uma das coisas que o Basileia trouxe é a consciência do risco. Hoje em dia, com o risco de crédito mais regulado e o risco de mercado mais regulado, a grande preocupação dos bancos está nos riscos não financeiros. Está na fraude, está na cibersegurança, e a geopolítica também é um risco não financeiro, apesar de ter impactos financeiros. Mas ainda estamos num estágio um bocadinho primário, para dizer o que é que se deve ou não fazer. E depende muito das posições geográficas de quem estamos a falar. Se estivermos a falar de bancos que tenham uma exposição europeia e global, é uma recomendação. Se estivermos a falar de bancos só portugueses, é outra recomendação. Mas, em comum, é um mapeamento dos riscos e dos fornecedores.

Portanto, os bancos estão a viver uma espécie de tempestade perfeita de riscos.
Um bocadinho. A questão da guerra na Ucrânia, do ponto de vista da gestão de risco, é uma aplicação direta de como é que a gestão de risco não deve ser feita. Porque a base da gestão de risco é a diversificação. Portanto, uma das lições que se está a tirar é que tenho de diversificar os meus fornecedores. Eu não posso depender de ninguém.

Começámos por falar a nível global, mas a nível local quais são os grandes desafios que os bancos em Portugal estão a sentir?
A grande preocupação dos nossos bancos e das seguradoras é a qualidade dos dados. O supervisor já se apercebeu disso há algum tempo e os bancos têm sofrido algumas auditorias para ajudar a acelerar a gestão de dados com qualidade. Quantos mais dados eu tiver, mais consigo precaver-me e quantificar os meus riscos.

Em que áreas é que faltam dados?
Em todas. A nossa praça financeira já tem muitos anos. Hoje, para registar um novo cliente, são precisos 30 dados diferentes, mas há 50 anos eram precisos três: idade, nome e morada. Os clientes à luz da nova regulamentação já estão bem remediados, ou seja, têm os dados em conformidade, mas existe todo um espetro de clientes que não tem os dados remediados. E eu só consigo fazer predição, estimativas, com dados homogéneos, porque senão tenho gaps e o que posso prever não é assertivo.

Então estamos a falar dos dados dos clientes?
De tudo. Operações, colaterais, tendências. O mundo da banca vai-se virar muito para o cliente. Vamos retirar o foco do produto e vamos ter o foco no cliente, apesar de o produto depois vir a seguir. E para tratar melhor o cliente, tenho que saber exatamente o que ele quer, qual o seu perfil e como se comporta. E para fazer isso preciso de dados sobre os clientes e sobre o seu comportamento. E depois tenho clientes que foram registados lá atrás e tenho de fazer a remediação dos dados desses clientes. A remediação é um projeto que todos os bancos têm, uma ‘never ending story’.
A inteligência artificial aqui é outro dos desafios, porque há necessidade de introduzir técnicas de inteligência artificial, mas a União Europeia já emitiu o AI Act, que está a desencorajar ou a desacelerar algum investimento, porque os bancos não querem investir e depois terem de voltar atrás.

A regulação trava um pouco a adoção de tecnologias para responder a todos estes desafios?
Estamos a falar de modelos que aprendem com eles próprios, a Gen IA, e isso tem que ser mais controlado. Acho que vai evoluir de forma controlada, mas o AI Act não é muito conciso. Diz, de uma forma generalista, que modelos que sejam de inteligência artificial generativa e que tenham influência no financeiro são proibidos.
Outra coisa é que nós é que programamos tudo e há uma discussão ética muito grande. Uma das alterações que se vai começar a ver nas instituições financeiras – e há empresas já mais avançadas nesta matéria – é obrigar a pôr no ‘board’ o Chief Ethical Officer, que vai ser responsável pelos tais controlos e fronteiras dos modelos. Mais cedo ou mais tarde vai ser necessário. Não tenho muitas dúvidas sobre isso.

E que grandes oportunidades é que a inteligência artificial pode trazer ao setor financeiro?
Um maior serviço ao cliente e maior celeridade. Por exemplo, uma das grandes preocupações da praça financeira portuguesa tem a ver com o número de reclamações. Muitas vezes há frustração de, enquanto instituição financeira, não conseguir responder a todas as reclamações, apesar de, hoje em dia, a maioria das instituições financeiras já ter um AI chatbox para fazer o primeiro escrutínio da reclamação. Mas depois, em certas situações, sai do chatbox e vai para uma caixa de e-mail. Nas reclamações ainda não se evoluiu.

Outra questão da área tecnológica é a implementação do DORA, o Regulamento de Resiliência Operacional Digital. Como é que estão os bancos nacionais nesta matéria?
Estão todos ‘on track’, porque é obrigatório. As áreas que ainda não estão bem implementadas têm que ir para a prioridade das agendas, porque o próprio BCE tem uma agenda muito restrita e ambiciosa no cumprimento do DORA. E o DORA não afeta só as empresas financeiras, estende-se aos fornecedores. A própria EY também está a ‘ter um DORA’, para poder dizer que está em conformidade no serviço que presta.

Relativamente à concorrência das fintech e das big tech para o setor financeiro, como é que isso está a impactar a inovação bancária?
Há uns anos, todos olhavam para os novos players de uma forma desconfortável, mas hoje em dia a banca já os olha como aliados e é assim que tem de continuar a ser. Do lado da banca – acho que aí é um problema talvez mais português – há a questão da inovação dos produtos. Por exemplo, o crédito à habitação é um produto que nas novas gerações vai tender a ser menos concorrido. Então, o que é que o vai substituir? A banca tem que inventar algo atrativo para as novas gerações. Porque para as novas gerações não é importante ter casa, é mais importante viajar e serem nómadas digitais. Têm que ter produtos que suportem essa vida. O mercado bancário tem de começar a inovar e a constituir novos produtos. Há quanto tempo é que não se vê um novo produto bancário de estrutura?

De certa forma, estas novas empresas, as fintech, estão a pressionar a banca tradicional a ser um bocadinho mais rápida?
Sim, sem dúvida. E orientadas a dar experiências ao cliente. É o chamado ‘customer experience’. Lá está, novamente os dados, porque precisam de saber muito de mim e do meu comportamento para saberem como é que me vão aconselhar.

A Rita já tem muito anos de experiência no setor financeiro. Em termos de desafios, qual foi aquele que a marcou mais?
Foi o Basileia. Saiu em 2004, mas o provocou uma mudança gigante. O Basileia passa do que eram provisões por dias em atraso para modelos matemáticos. Isto é gigante, muda tudo. Essa foi a maior mudança, não tenho a mínima dúvida.

E o que é perspetiva daqui para a frente ser o maior desafio do setor financeiro?
É a inteligência artificial e os gaps das gerações. Porque estamos quase a ter as pessoas que nasceram numa época completamente digital a chegarem à idade profissional. E não sei que tipo de consumidores é que vão ser, não sei que tipo de clientes é que vão ser, não sei que exigências é que vão fazer.
Outra das grandes adaptações que gera conflitos geracionais é o uso da inteligência artificial. Há chefias no mundo inteiro, e é um dos desafios da inteligência artificial, que não estão a permitir que as suas equipas usem inteligência artificial, porque eles próprios não têm flexibilidade mental para a usar. Não devia acontecer. Ou seja, nós temos que evoluir e tornarmo-nos melhores. A inteligência artificial veio para melhorar, desde que bem usada, mas a sociedade nem sempre vê isso.