
Em pequeno, desenhava “bonecos” de animais. Começou pelos tubarões, mas estendeu rapidamente o leque de opções. Foi o início de uma paixão que o levou, mais tarde, a dividir o tempo entre a biologia e a ilustração científica.
Um curso dirigido pelo biólogo e ilustrador Pedro Salgado abriu-lhe a primeira porta e a partir daí, Miguel Martins deixou apenas “de só gostar de desenhar para procurar uma coisa um bocadinho mais sistemática e desenhar animais de uma forma mais rigorosa”.
Hoje, divide o tempo entre o desenho e a investigação no Centro de Estatística e Aplicações da Universidade de Lisboa (CEAUL), onde estuda a distribuição da população de golfinhos em Portugal.
"É como se fosse uma espécie de puzzle"
Desenhar um animal é um processo longo. O tempo, vai depender do quão familiarizado se está com o animal. Em entrevista à SIC Notícias, Miguel explica que o processo pode demorar longos dias.
“Desenhar uma orca que é uma coisa com que eu já estou familiarizado demora umas 10 horas (...) Existem outros grupos de cetáceos, que são os animais que eu maioritariamente desenho, por exemplo, as baleias de bico que são muito raros, têm muito poucas fotografias e não existe muita literatura. Nesses casos, vou passar umas 50 horas à procura de referências e depois para conseguir fazer um desenho minimamente realista, será outras 30 horas."
Este processo, além de moroso, passa por vários momentos. Primeiro, Miguel escolhe o objeto de estudo. Um passo que até pode parecer simples, mas “os animais, tal como nós, variam imenso". Por isso, explica: "temos, por exemplo, espécies que têm dimorfismo sexual, portanto, os machos são diferentes das fêmeas morfologicamente, que é o caso, por exemplo, dos leões".
“Nos animais que eu desenho, as orcas são um exemplo muito marcante. Se me pedem para desenhar uma orca, uma das perguntas que eu vou fazer de imediato é: vocês querem que eu desenhe um macho, uma fêmea ou querem que eu desenhe ambos? Supondo já que estão a pedir um desenho de um animal adulto. Depois disso, para além da variação entre sexos, pode também existir variação geográfica muito marcada.”
Depois da escolha, passa à recolha de referências fotográficas e bibliográficas. O investigador explica que nunca faz nada "recorrendo à imaginação" porque pode ser influenciado apenas por aquilo a que prestou atenção e não ao que é real.
Além disso, a literatura científica é uma forma de "corrigir aspetos" que com as fotografias "não conseguia chegar lá".
" As fotografias às vezes são tiradas com certos ângulos e, assim, ir apenas pela fotografia pode gerar alguns erros que se calhar a população geral nem sequer vai reconhecer, mas em termos de rigor científico temos que ter as coisas certas e, por isso, a literatura científica ajuda a ultrapassar isso".
Com todo o trabalho estudado, está na hora de pôr mãos à obra: "defino uma pose 'standard' para o animal, dependendo se é uma vista dorsal, ventral ou lateral; defino as proporções e os sítios onde cada coisa tem de estar - como se fosse uma espécie de puzzle - e depois, a partir daí, vem o processo do desenho final que começa com desenhar basicamente um desenho de linha e depois uma coloração".
"Há coisas que nós conseguimos comunicar melhor"
A principal diferença entre a fotografia e a ilustração está na captação. Miguel explica que enquanto um fotógrafo “retrata um sujeito como ele está naquele momento”, um ilustrador “constrói a realidade uma peça de cada vez, (...) portanto, é uma representação da realidade de uma forma mais rigorosa possível"
"Há coisas que nós conseguimos comunicar melhor. (...) Se quiser comunicar a morfologia externa completa de um golfinho através da fotografia, tinha de passar mesmo muito tempo a ir ao mar e a tentar chegar lá, enquanto que se eu quiser fazer uma ilustração, procuro referências aqui e ali”, explica.
"Se calhar, há uma referência que mostra só a cabeça, outra que mostra mais costas, se calhar tenho sorte e encontro uma que apanhe a barriga nalgum lado, apanhe a cauda noutro… e consigo montar uma espécie de golfinho a partir daí com o suporte da literatura científica e consigo comunicar uma coisa muito fidedigna à realidade a partir daí”, concluiu.
Legenda: Ilustração científica de um macho adulto de orca de Bigg (Orcinus orca rectipinnus) / Miguel Martins
Outro aspeto importante na diferença entre fotografia e ilustração tem a ver com a divergência entre dificuldade/facilidade em mostrar diferenças. Miguel explica que, por exemplo, “para mostrar diferenças entre os sexos, tipo um leão e uma leoa, se calhar com a fotografia conseguimos facilmente”, mas se falarmos em animais em diferentes áreas geográficas, o processo torna-se mais complexo.
“Vai ser muito difícil, por exemplo, tirar uma fotografia a um lobo que vive na América e a um que vive aqui na Península Ibérica. Se eu quiser mostrar essas diferenças, vou ter que ter fotografias diferentes, ou então posso fazer uma ilustração de cada um e pôr as duas na mesma imagem e fica comunicado.”
"Vi imagens geradas por IA de golfinhos com mais do que duas barbatanas dorsais e eles só têm uma"
À SIC Notícias, Miguel falou ainda sobre Inteligência Artificial e a forma como isso pode criar problemas no trabalho de um ilustrador científico.
Explicou que de modo geral, não vê grandes problemas porque “a inteligência artificial precisaria de ser treinada por ilustrações científicas para fazer algo semelhante, e não é que não vá ser, eventualmente, mas acho que é um mercado tão de nicho comparado, por exemplo, a esta nova 'trend' do Studio Ghibli”.
Legenda: Ilustração científica de um golfinho-roaz-corvineiro (Tursiops truncatus) adulto / Miguel Martins
E isso, segundo o investigador, notasse principalmente quando há uma tentativa de representar animais.“Já vi imagens geradas por inteligência artificial de golfinhos com mais do que duas barbatanas dorsais e os golfinhos só têm uma, vi imagens de peixes que aquilo é uma mistura de várias espécies de peixe”.
“Principalmente no que toca às imagens de animais pré-históricos, a inteligência artificial falha muito porque é treinada principalmente por imagens vindas de filmes como o Jurassic Park, o que não representam animais pré-históricos como a ciência os entende e, portanto, há aí esse grande filtro para a inteligência artificial que depois acaba por não recriar uma ilustração científica.
"A forma como já fui abordado é quase como se isto fosse um hobby"
Para Miguel Martins, o reconhecimento da profissão ainda não é total, principalmente quando se fala de remunerações. “Pela minha experiência e pela experiência das pessoas com quem eu tenho falado, querem ter boas ilustrações e dar uso a essas boas ilustrações, mas raramente planeiam um 'budget' que inclua esse trabalho.
“A forma como já fui abordado é quase como: isto é um hobby para ti, tu já gostas de fazer isso, portanto podes fazer de graça de alguma forma”.
O que, na opinião do investigador, não é justo, uma vez que “são várias horas de trabalho que uma ilustração custa e, portanto, são coisas que têm de ser reconhecidas do ponto de vista financeiro”.
Legenda: Composição de ilustrações da vista dorsal de baleias-piloto (Globicephala melas, Globicephala macrorhynchus), para o sexto volume do Ridgway and Harrison's Handbook of Marine Mammals / Miguel Martins
Miguel explica que o trabalho de ilustrador científico é muito mais reconhecido lá fora, principalmente na América e no Canadá, mas isso não impede que na Europa, e mais especificamente no nosso país, não existam bons profissionais.
“Temos em Portugal ilustradores excelentes de todos os tópicos. O Pedro Salgado, a Davina Falcão é espetacular em desenhos de répteis, temos a Luísa Crisóstomo, a Carolina Correia são todas ilustradoras muito boas. E, portanto, nós mesmo cá em Portugal temos esses ilustradores.Apesar de ser algo que não é muito valorizado cá, pelo menos que eu percepcione sendo assim, isso não impede de termos trabalho de qualidade que é publicado internacionalmente e reconhecido internacionalmente”.
Criada associação para apoiar profissionais
Como forma de contribuir para o reconhecimento da profissão, ilustradores científicos e espanhóis criaram uma associação para apoiar não só profissionais no ativo, mas quem esteja a começar.
De acordo com a agência Lusa, a associação - Coletivo Ibérico Profissional de Ilustradores Científicos (CIPIC) - começou a ser pensada em Espanha, mas o primeiro congresso, previsto para setembro, será em Peniche.
"Estamos relativamente bem sintonizados no conhecimento das boas práticas, questões legais, contratuais, orçamentais, mas, sobretudo para os mais novos na profissão, ainda falta uma boa referência de base, com partilha de informação objetiva, validada e apoio a diversos níveis na prática profissional", disse Pedro Salgado à Lusa.
O Coletivo foi registado no nosso país em fevereiro. Conta atualmente com 12 ilustradores, entre portugueses e espanhóis, mas espera que esse número aumente muito em breve.