Portugal registou, em 2023, um aumento do número de casos de hepatite, particularmente da hepatite A e C, números que podem estar relacionados "em parte" com um surto e com a consciencialização para a importância do rastreio.

De acordo com o relatório do Programa Nacional para as Hepatites Virais (PNHV) 2024 que é apresentado hoje, no Porto, de 2022 para 2023, particularmente na hepatite A verificou-se um aumento de 25% e na hepatite C um aumento de 19%.

"Este aumento poderá ser justificado, em parte, pelo surto de hepatite A e pelo potencial aumento de consciencialização para a importância do rastreio de hepatites, pelo menos uma vez na vida", lê-se no documento.

A equipa liderada por Rui Tato Marinho, que realizou o relatório, aponta que relativamente ao aparente aumento do número de casos confirmados para a hepatite C, atingindo-se em 2023 valores similares aos pré-pandémicos, poderá estar explicado por se estar na plena retoma da atividade assistencial.

Quanto ao aumento da hepatite A, nota para o surto que terá começado no final do ano passado e que levou a Direção-Geral da Saúde (DGS) a constituir uma Equipa de Gestão e Resposta ao alerta da Hepatite A.

Em janeiro de 2024, através do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE), detetou-se o aumento do número de casos de hepatite A em Portugal, numa média de cinco/seis casos por semana superior à média semanal de 0,5 casos nos quatro anos anteriores.

Salvaguardando que estes são dados provisórios, no relatório lê-se que a investigação epidemiológica subsequente identificou 125 casos confirmados de Hepatite A, entre 07 de outubro de 2023 e 07 de julho de 2024.

A maioria destes casos tinha entre os 18-44 anos de idade (80%), era do sexo masculino (85%), e da região de Lisboa e Vale do Tejo (70%).

Foi, ainda, identificado como fonte provável de transmissão a atividade sexual em 44% dos casos, a contaminação alimentar/água em 16%, o contacto próximo em 7% e em 33% dos casos não foi possível identificar a via de transmissão.

"Portugal está preparado"

Reforçando a convicção de que o aumento do número de casos estará associado ao surto, Rui Tato Marinho destacou a importância da atuação, lembrando que a DGS criou esta comissão de emergência para lidar com a Hepatite A, como fez com a covid-19 ou com a hepatite aguda grave que afetou, recentemente, muitas crianças.

"Portugal está preparado. Surge uma epidemia amanhã e rapidamente se forma um grupo multidisciplinar para começar a atuar com modelos de atuação que podem ser comuns a outras doenças. Portugal habituou-se a lidar com o inimigo, mesmo que seja um inimigo que não se conheça totalmente", disse Rui Tato Marinho, sublinhando uma das principais recomendações do programa.

"É um dos nossos objetivos promover a vacinação da hepatite A. Não é uma doença tão grave, mas é importante. E fizeram-se quase 60.000 doses de vacina. Acaba por ser um marco em Portugal", referiu.

Enquanto a vacina para a hepatite B é administrada a todas as crianças recém-nascidas, de acordo com o esquema recomendado pelo Programa Nacional de Vacinação (PNV), a vacina contra a hepatite A não é recomendada por rotina, mas está recomendada em alguns grupos de risco ou e em contexto de pré-exposição, como viagens por exemplo.

São, ainda, elegíveis para vacinação gratuita contra a hepatite A determinadas pessoas, nomeadamente candidatos a transplante hepático e crianças sob terapêutica com fatores de coagulação derivados do plasma.

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À Lusa, Rui Tato Marinho destacou ainda que nas hepatite B e C se sabe que "os casos identificados são inferiores ao real": "Mas também sabemos que muitos são crónicos, pessoas que já têm há muito tempo e só agora é que sabem", acrescentou.

Rui Tato Marinho falou, ainda, do aparecimento de duas hepatites mais raras, a hepatite D (Delta, que está associada à B) e a hepatite E, mais conhecida como causa de epidemias em África ou na Ásia.

"Existem casos pontuais em Portugal e até em pessoas que não fazem viagens para países de risco", referiu.

A diminuição dos internamentos e dos transplantes por hepatite B e C foram outros dos dados destacados por Rui Tato Marinho.

Quanto à mortalidade em 2023, o diretor disse que "a morte por cirrose está mais ou menos estabilizada e pode diminuir", enquanto "a morte por cancro do fígado poderá vir a aumentar", mas este é, apontou, "um fenómeno internacional".

"Sabemos que 37% de quem faz tratamento à hepatite C - quase 2.000 em Portugal --tem o fígado já estragado. As pessoas com cirrose, mesmo que eliminemos o vírus da hepatite C, vão manter para toda a vida o risco de poder vir a ter cancro no fígado. Têm de ser vigiados para toda a vida", alertou.

Mais de um milhão de testes contra hepatite B e C feitos em 2023

Portugal realizou mais de um milhão de testes às hepatites B e C em 2023, um dado considerado positivo, mas o diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais defende a importância de testar ainda mais.

"Somos dos países da Europa que mais testa. Isto são doenças silenciosas, doenças que as pessoas não sabem que têm e podem ter durante 20/30 anos. Toda a gente devia fazer os testes de hepatite B, hepatite C e da SIDA pelo menos uma vez na vida", disse Rui Tato Marinho.

Em entrevista à Lusa, o diretor do PNHV salientou a importância da testagem porque permite "identificar pessoas que não sabem que têm a doença, vacinar, curar e proteger a família e outras pessoas", uma vez que estão em causa doenças infeciosas.

O papel das organizações não-governamentais e comunitárias

Rui Tato Marinho destacou ainda a intervenção no terreno de organizações não-governamentais (ONG) que ajudam a promover modos de prevenção e contribuem, indiretamente, para a pacificação social.

"Portugal na área das hepatites virais é dos melhores do mundo. Não é perfeito, mas está entre os que faz as coisas mais bem feitas. Uma das coisas que em Portugal se tem feito muito bem é a atividade das ONG no terreno que estão muito perto de algumas pessoas que têm comportamentos de vida que aumentam a suscetibilidade para hepatite C", afirmou.

Em entrevista à Lusa, o diretor falou do papel das ONG.

"Têm um papel muito importante porque estão mesmo perto das pessoas. Nem toda a gente vai aos hospitais ou aos centros de saúde. E há um contributo indireto porque contribui para a pacificação social (...). Todos colaboram para um bem comum que é ajudar quem está doente, não ser punitivo. Não dizer 'tiveste a vida assim e assado e [isso] tem consequências'. Trata-se de recuperar as pessoas", defendeu.

O relatório 2024 do PNHV destaca mais de uma dezena de organizações não-governamentais e organizações de base comunitária e refere que, desde 2014, ano em que foi implementada em Portugal a estratégia de disponibilização do teste rápido de VHB e VHC em populações-chave e grupos vulneráveis, "tem-se verificado uma cada vez maior adesão deste tipo de estruturas, o que se traduz no aumento do número de testes realizados".

"O apoio financeiro da DGS para o desenvolvimento de projetos nesta área, bem como o acordo entre o Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, têm permitido disponibilizar o teste rápido, em diversos contextos e a diferentes populações-chave e grupos vulneráveis, com tendência crescente anual do número de testes rápidos realizados", lê-se no documento.

Com Lusa