Qual a incidência do cancro cabeça e pescoço?
É importante definir a doença antes de explicar qual o número de pessoas que são diagnosticadas por ano, de forma a percebermos de que doença estamos a falar. O cancro de cabeça e pescoço afeta as vias aerodisgestivas (por onde circulam os alimentos e o ar) da cabeça e pescoço – boca, nariz, faringe e laringe. Todos os anos são diagnosticados em Portugal cerca de 2.500 a 3 mil novos casos.

Quais são as pessoas mais afetadas?
As pessoas mais afetadas são aquelas que têm um ou mais fatores de risco. Em mais de 70% dos casos, os fatores de risco são a exposição crónica ao fumo do tabaco e ao álcool. E, especificamente para o cancro da orofaringe, a infeção sexualmente transmissível ao vírus do papiloma humano (HPV) tem vindo a adquirir maior importância ao longo dos anos. Existem ainda outros fatores com alguma associação de risco, designadamente próteses dentárias mal-adaptadas (para cancro da cavidade oral), má higiene oral e imunossupressão [causada, por exemplo, pela infeção ao vírus de imunodeficiência humana (VIH)]. Por fim, a infeção ao vírus Epstein-Barr é fator de risco para o cancro da nasofaringe (mais frequente na população asiática).

“Em mais de 70% dos casos, os fatores de risco são a exposição crónica ao fumo do tabaco e ao álcool”

Mais de metade dos doentes são diagnosticados em fases avançadas da doença. Quais são os principais desafios associados ao diagnóstico tardio?
A doença avançada é tratada com várias modalidades terapêuticas. Significa que são necessários tratamentos combinados, por exemplo cirurgia (e na doença avançada falamos de cirurgias extensas, muitas vezes com necessidade de reconstrução) e radioterapia, associada ou não a quimioterapia, ou quimioterapia e radioterapia. As consequências são importantes sequelas terapêuticas que afetam importantes funções, como a fala, a respiração e a alimentação. Podem ser necessárias “ajudas”, como a traqueostomia, com a afeção lógica da fala, e as sondas de alimentação. Para contrabalançar estas e outras sequelas, e guiar os sobreviventes na reabilitação necessária, é fundamental a multidisciplinariedade das equipas.

Outro desafio diz respeito à probabilidade de recorrência. Quando a doença é diagnosticada em fase avançada, metade dos doentes tratados irão ter recorrência da doença, o que implica novos desafios em termos de tratamento e suporte. Novamente, a educação dos doentes para a identificação dos sintomas de alerta e a multidisciplinariedade são fundamentais.

“Especificamente para o cancro da orofaringe, a infeção sexualmente transmissível ao vírus do papiloma humano (HPV) tem vindo a adquirir maior importância ao longo dos ano”

Qual a razão deste diagnóstico tardio? A que sinais e sintomas é que as pessoas e, até, os médicos assistentes devem estar atentos?
Os sinais e os sintomas de alerta estão diretamente relacionados com as zonas envolvidas, nomeadamente aftas e lesões brancas ou vermelhas na boca, dor de garganta, rouquidão, dificuldade em engolir, escorrência nasal (principalmente se unilateral e com sangue) ou nódulos ou massas do pescoço. Por serem sinais e sintomas comuns aos de outras condições menos graves, muitas vezes passam despercebidos. Contudo, é preciso estar atento à sua duração e sempre que atingirem ou ultrapassarem as três semanas é conveniente procurar um médico.

Considera que deveria haver um rastreio nacional organizado para este cancro?
É importante diferenciar os termos rastreio e diagnóstico precoce. Rastreio é a procura de doença na ausência de sintomas. É o que está estabelecido para o cancro da mama, do cancro colorretal e do cancro do colo do útero. Existem critérios muito bem definidos para seleção das doenças e métodos diagnóstico para a realização de rastreios em populações saudáveis. Definitivamente o cancro da cabeça e pescoço não cumpre estes critérios.

O diagnóstico precoce é a tentativa de diagnosticar doenças aquando da identificação dos primeiros sintomas. É possível em doenças que se manifestam precocemente, como é o caso do cancro de cabeça e pescoço, principalmente porque ocorre em áreas de muito fácil acesso e que desempenham funções vitais. E é útil quando tem impacto prognóstico, como é o caso do cancro de cabeça e pescoço.

Por isso, considero que deveria haver um esforço nacional para procurar sintomas suspeitos nas populações de risco, particularmente em fumadores e consumidores crónicos de bebidas alcoólicas.

Quem deveria fazer este rastreio e com que frequência?
A identificação dos casos suspeitos pode ser feita pelo próprio, nos cuidados de saúde primários e, no caso da cavidade oral, pela Medicina Dentária. A chave, depois, é a referenciação precoce para as equipas hospitalares que fazem o diagnóstico. Habitualmente são equipas cirúrgicas compostas por otorrinolaringologistas e/ou cirurgiões de cabeça e pescoço e/ou estomatologistas (no caso do cancro oral).

É possível prevenir a doença?
A melhor forma de prevenir este cancro, que é essencialmente causado por hábitos e comportamentos de risco, é evitar, reduzir ou anular os hábitos e comportamentos de risco. Ou seja, não iniciar ou reduzir/anular o consumo de tabaco e de álcool. No que diz respeito ao HPV, evitar relações sexuais desprotegidas com múltiplos parceiros e cumprir o plano nacional de vacinação, que inclui a vacina anti-HPV a crianças e adolescentes do género feminino e, mais recentemente, masculino.

Qual a importância da vacinação contra o HPV?
Como já referido, a infeção por HPV é um fator de risco para cancro da orofaringe. A vacinação reduz as taxas da infeção e, consequentemente, os casos de cancro da orofaringe associados a infeção. Para tal, foi muito importante alargar a vacinação aos rapazes.

Quais os principais desafios no tratamento e seguimento destes doentes?
É uma doença que frequentemente afeta pessoas com fatores de risco muito enraizados, particularmente o consumo de tabaco e álcool. A evicção destes hábitos é fundamental para o processo de cura e muitas vezes não é fácil.

O facto de ser diagnosticada em fase avançada em mais de metade dos casos torna o tratamento muito mais complexo e aumenta a probabilidade de complicações. Novamente, falamos de complicações que muitas vezes afetam funções vitais como respirar e alimentar-se, e também a função muito importante da fala, como elemento principal da comunicação.

Todos estes desafios obrigam as equipas a organizar-se e trabalhar de forma interligada, como uma cadeia em que todos os elos são importante e contam, desde as especialidades diagnósticas e terapêuticas às especialidades e valências de suporte e reabilitação, sendo que o elo mais importante é o doente, os seus próximos e o seu ambiente.

A 11.ª Campanha de Sensibilização para o Cancro da Cabeça e Pescoço – Make Sense tem como foco a prevenção primária, secundária e terciária. Pode explicar em que consiste cada uma delas e a sua importância?

A prevenção primária diz respeito à prevenção da doença e promoção da saúde. É o que o GECCP planeia fazer com as ações educativas em escolas de todo o país – explicar aos adolescentes quais são os fatores de risco e a importância de os evitar.

A prevenção secundária diz respeito à deteção precoce dos problemas de forma a reverter o processo de doença e diminuir as recorrências. Neste caso, vamos atuar nas sessões de diagnóstico precoce (apelidadas de rastreio a nível europeu, por motivos comunicacionais, mas que já vimos que são de diagnóstico precoce) em Lisboa e no Porto. Vamos também promover sessões formativas para os Cuidados de Saúde Primários a nível nacional, de forma a aumentar o conhecimento sobre o diagnóstico precoce e quando referenciar.

A prevenção terciária diz respeito à mitigação dos efeitos da doença e tratamentos e ajudar os doentes a viver com a doença e sequelas terapêuticas. A este nível, estamos há vários anos, a comunicar com as entidades reguladoras de forma a finalmente ver implementado o Despacho n.º 15135/2016 de apoio à reabilitação oral e contamos que esteja para breve. Novamente a ação formativa de alcance nacional para os cuidados de saúde primários e o documento de ‘Recomendações GECCP dos cuidados aos sobreviventes de cancro da cabeça e pescoço’, lançado e distribuído no ano passado por todos os ACES têm, ambas, o objetivo de auxiliar as equipas na promoção da melhor reabilitação, integrada nos cuidados de saúde destes doentes.

SM

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