A cultura e identidade de cada região, revelam-se à mesa, mas são muitas as vezes que, ao fazer-se uma refeição, se desconhecem as origens ou as histórias que levaram à origem de determinado prato. Gastronomicamente rico, Portugal tem centenas de receitas únicas, algumas criadas pela necessidade de subsistência, outras, cujas origens remetem para lendas e histórias, ou para influências de outras culturas, que adaptamos para o sabor nacional.
Ao longo das mais de 260 páginas do Guia “Restaurantes, Pratos e Produtos Regionais”, com o apoio do Recheio, encontra 50 receitas regionais que recuperam lembranças de longos almoços de dia de festa, com mesa farta, ou de intensa jornada de trabalho, mediada por refeição humilde. Contam a história do país rural, dos usos e costumes quotidianos do labor no campo, da faina no mar e da devoção religiosa que enchia a mesa em dia de romaria da aldeia. Conheça algumas das curiosidades que pode descobrir nas páginas desta publicação.
Artimanhas, Camões e Eça
O engenho dos caseiros das casas abastadas da região do Alto Tâmega acabou por dar origem ao “Anho assado com arroz de forno” que em dias de festa, era sinónimo de celebração, habitual em bodas e no repasto que assinalava o fim da vindima. Para poderem desfrutar do sabor da carne que lhes estava vedada, os caseiros criaram a artimanha de assar o anho sobre o arroz, como forma de lhe dar sabor. Já a receita do “Arroz de cabidela”, caldoso, malandro, escuro e aveludado é “tão antiga na cozinha portuguesa que já Camões se lhe refere. E Eça de Queirós fala das “cabidelas de frango coevas da monarquia”, ou, noutro ponto, nessa “maravilhosa cabidela de frango, petisco predileto de D. João IV, de que os fidalgos ingleses, que vieram ao reino buscar a noiva de Carlos II, levaram para Londres a surpreendente notícia”.
À conquista de Ceuta, Alexandre Dumas e D. Quixote
Também terá sido a história dos bravos portugueses que partiram à conquista de Ceuta que terá dado origem às “Tripas à moda do Porto”. Aconteceu por volta de 1415, aquando da expedição comandada pelo rei D. João I, rumo à conquista de Ceuta. O Porto, além de todo o trabalho na construção dos navios, forneceu tudo o que tinha para os mantimentos da frota nomeadamente carne, sobrando apenas as miudezas. Dessa necessidade, teré surgido esta receita que se tornou símbolo da cidade e conferiu a alcunha de “tripeiros” aos seus habitantes. Já o “Cabrito estonado” é referenciado no século XIX, por Alexandre Dumas, autor dos romances de capa e espada “Os Três Mosqueteiros” e o “Conde de Monte Cristo”. O escritor descreve a experiência de comer um borrego preparado à moda do deserto, na Tunísia, assado com a pele. A importância deste prato, da região de Oleiros é tal que em 2008 foi considerado um dos 10 bens gastronómicos portugueses que importa valorizar e preservar.
Também na literatura, já no ‘Dom Quixote’, de Miguel de Cervantes, editado pela primeira vez em 1605, se falava de “Chanfana”. No clássico da literatura pode ler-se: “Luta com eles para mostrar que é mais hábil, e com isso ganhar o respeito e a sobrevivência, com mostras de competência na arte de manipular a ‘Chanfana’ na circunvizinhança dos castelos.” Nos Açores, a mesma “Chanfana” terá chegado à Terceira “com os povoadores no final do século XV ou durante o século XVI, embora as referências mais consistentes sobre a confeção nas casas dos terceirenses remontem ao século XVII”, associada à origem beirã de alguns povoadores, a “Alcatra da Terceira” também é servida em alguidares de barro e confecionada no forno, mas neste caso com carne de cabra velha em vez da carne de vaca.
No caso do “Frango na púcara”, reza a história que a origem deste prato será antiga, remonta ao século XIX e início do século XX e ao Mosteiro de Alcobaça onde era usada, em vez do frango, a perdiz. A receita chegou a inspirar peças de teatro”, como “A Última Refeição”, com texto de António Cabrita, que fala sobre a vida de Bertolt Brecht e da mulher, Helen Weigel, em que esta tenta ressuscitá-lo com um prato de “Frango na púcara”.
Frades, políticos e taberneiros
A origem de muitas das receitas tradicionais portuguesas está assente em lendas, cuja veracidade é impossível de aferir. Talvez a mais famosa seja a da “Sopa da pedra” que conta que um frade, ao passar por uma casa, terá perguntado a um casal idoso se lhe forneciam apenas água a ferver, onde colocou uma pedra a cozer, para se alimentar. Astuto, foi depois pedindo para irem adicionando “apenas” um pouco de batata, feijão, coentros, carne e enchidos, entre outros ingredientes, até obter um caldo grosso e bem recheado. Depois de tudo comer, retirou a pedra dizendo: “A pedra levo-a comigo para outra vez!”.
Curiosa e cheia de sentido de oportunidade é a história da criação do “Leitão da Bairrada”. Habitualmente confeccionado nas celebrações domésticas, surge ao público pelo olho para o negócio de Álvaro Pedro, nascido em Alpalhão, Anadia, que começou a vender, em 1941, “Sandes de leitão” aos automobilistas que circulavam na EN1. Em 1949 abre o primeiro restaurante a comercializar “Leitão assado à Bairrada”, ainda hoje em funcionamento, o Pedro dos Leitões. Com relevância histórica surge também o “Maranho da Sertã”, cujos registos datam a 1858. O prato ganha destaque em 1913, durante um almoço oferecido a Afonso Costa, primeiro-ministro da I República, onde a especialidade foi a estrela principal, demonstrando a importância regional da receita.
Numa passagem pela capital, descobre-se que a origem do “Bacalhau à Brás”, verdadeiro emblema do bacalhau em Lisboa, apesar das semelhanças com o “Bacalhau à lisbonense”, terá sido inventado por um taberneiro do Bairro Alto, de seu nome “Braz”, algures nos finais do século XIX. Em terras espanholas o prato é também conhecido como “Revuelto de bacalau a la portuguesa”.
Origem árabe e aproveitamento saudável
Pelo Alentejo é impossível falar de gastronomia sem se referir a “Açorda à Alentejana”. Curiosamente, o termo “açorda” será originário do árabe e traduz a ideia de “pão migado, ao qual se juntam coentros, água quente e alho”. “Tharîd”, raiz etimológica da palavra açorda, significa “migar pão”. O primeiro registo conhecido da açorda no receituário tradicional remete para a publicação da “Arte de Cozinhar”, de 1876, de João da Mata.
Já as “Migas com entrecosto” foram engenho da necessidade de subsistência. Para conservar o entrecosto fritava-se a peça em banha após a matança do porco, entre novembro e fevereiro. Guardado em pote e coberto com gordura da fritura, era consumido posteriormente e podia acompanhar as migas de pão. Ainda pelo Alentejo, amado por uns, odiado por outros, os “Pezinhos de coentrada” são uma prova de que a saúde era também uma preocupação. Rico em colágeno, proteína e vitaminas do complexo B, que ajudam a fortalecer os ossos e a prevenir doenças como a osteoporose, o pé de porco é igualmente uma fonte importante de ferro, mineral essencial à saúde do sangue e também do sistema imunológico.