
A Europol define o branqueamento de capitais como o processo de ocultar a origem ilícita de bens ou rendimentos, e que envolve três fases: colocação (entrada do dinheiro no sistema financeiro, ex.: depósitos ou compras em numerário), estratificação (movimentação e transformação dos fundos, ex.: transferências, criptoativos, empresas de fachada) e integração (reintrodução na economia lícita, ex.: imóveis, negócios, ativos de luxo).
Cerca de 70% das redes criminosas na União Europeia (UE) usam técnicas de branqueamento, 60% recorrem à corrupção e mais de 80% exploram estruturas empresariais legais para fins ilícitos (Europol, 2023). Para o crime organizado prosperar, são essenciais: a possibilidade de branqueamento de grandes volumes de capitais, um ecossistema financeiro que o suporte e uma rede de corrupção que garanta acesso. Branqueamento, finanças criminosas e corrupção são invisíveis, destrutivos para a sociedade e indispensáveis para estas redes criminosas (Europol, 2023).
A Prevenção do Branqueamento de Capitais (Anti-Money Laundering – AML) é um conjunto de leis, regras e procedimentos destinados a impedir que dinheiro obtido de forma ilícita — p.e., através de corrupção, tráfico ou fraude — seja “limpo” e inserido na economia como se tivesse origem lícita. Envolve a identificação de clientes, a monitorização de transações e a comunicação de operações suspeitas às autoridades e é essencial para evitar que o sistema financeiro seja usado para crimes, como corrupção ou terrorismo, proteger a integridade da economia e a confiança nas instituições, nomeadamente financeiras, e contribui para a segurança económica e jurídica dos países.
O sistema AML da União Europeia (UE) assenta em regulamentos e diretivas que visam proteger o sistema financeiro contra usos ilícitos. Em 2023 e 2024, a UE adotou um novo pacote legislativo, com destaque para o Regulamento (UE) 2023/1113, os Regulamentos (UE) 2024/1620 e 2024/1624, que criam a Autoridade Europeia de Luta contra o Branqueamento de Capitais (AMLA) e uniformizam regras para entidades obrigadas, e a Diretiva (UE) 2024/1640, que reforça a implementação nacional. A AMLA terá supervisão direta sobre entidades financeiras e de criptoativos de maior risco, enquanto as restantes ficam a cargo das autoridades nacionais, sob sua coordenação. Os controlos incluem identificação de clientes e beneficiários efetivos, ‘due diligence’ baseada no risco, monitorização de transações, aplicação da Travel Rule (também para cripto) e reporte obrigatório de suspeitas. A AMLA pode ainda aplicar sanções e coordenar investigações.
Por sua vez, o sistema dos Estados Unidos da América (EUA) baseia-se no Bank Secrecy Act (1970) e foi reforçado pelo USA PATRIOT Act (2001) e pelo AML Act of 2020, que ampliou os poderes do FinCEN, estabeleceu reporte de beneficiários efetivos (via Corporate Transparency Act) e passou a abranger setores como criptoativos e fintechs. Apesar das diferenças — centralização na UE versus descentralização nos EUA, enfoque preventivo europeu versus modelo mais corretivo americano — ambos os regimes adotam controlos semelhantes. De notar que os criptoativos passaram a ser incluídos na regulação AML, o que é relevante dado seu uso crescente em fraudes, branqueamento e comércio ilícito, inclusive através de serviços como “money laundering as-a-service” (Europol, 2023).
Existe, pois, alinhamento internacional entre reguladores, sociedade, instituições financeiras e autoridades no combate e prevenção de um instrumento essencial às redes criminosas que é o branqueamento de capitais. Ou melhor, existia.
Em março de 2025, o Departamento do Tesouro dos EUA anunciou que não aplicará sanções por incumprimento da legislação AML, que visa prevenir o uso de empresas de fachada, por cidadãos ou empresas americanas. Isto apesar de declarações anteriores do próprio departamento alertando que os EUA são altamente vulneráveis ao branqueamento de capitais, com estimativas anuais de USD 300 mil milhões, sobretudo por redes criminosas da América Latina (Foreign Policy, 2024; InSight Crime, 2025). A FACT Coalition e a Global Financial Integrity classificaram a medida como um grave retrocesso no combate à corrupção e aos fluxos ilícitos, além de uma subversão da vontade do Congresso.
Além disso, em 10 de fevereiro de 2025, Trump anunciou a suspensão por 180 dias da aplicação da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), enquanto são revistas as diretrizes com foco na “competitividade americana”, o que já levou a pedidos de suspensão de julgamentos de casos de esquemas de suborno e corrupção como seja o dos executivos da Cognizant Technology Solutions (WSJ, 2025). A FCPA, em vigor desde 1977, proíbe o suborno internacional para obtenção de vantagens comerciais, e tem sido uma peça central no combate à corrupção global.
Mais, Trump perdoou três cofundadores da plataforma de criptoativos BitMEX e um executivo, condenados a liberdade condicional e multas de USD 30 milhões por branqueamento de capitais e incumprimento de normas AML. Além disso, perdoou a própria HDR Global Trading, dona da BitMEX, multada em USD 100 milhões há apenas três meses — uma decisão sem precedentes nos EUA (CNBC, 2025). World Liberty Financial, entidade associada à família Trump, lançou um criptoativo stablecoin, USD1, supostamente indexado ao dólar americano e apoiado por títulos do tesouro do governo americano de curto prazo, depósitos em dólares americanos e outros, tendo captado mais de USD 550 milhões. É público que a família Trump tem negociado com a Binance US, plataforma de criptoativos, cujo CEO em 2023 foi multado em 4,3 mil milhões de dólares por falhas graves em AML e sanções, bem como o lançamento da nova reserva estratégica que deverá incluir cinco criptoativos. Os EUA são o país número 1 em vítimas de crime associadas a criptoativos a nível mundial. Em 2023, os EUA registaram 57.762 queixas de vítimas de crimes associadas a criptoativos que ascenderam a USD 4.809 mil milhões (FBI, 2024).
Estamos perante uma crescente divergência entre UE e EUA, não apenas nas abordagens regulatórias, mas na visão do mundo. A Europa, com os seus desafios, constrói o seu sistema AML, baseado na transparência, prevenção e responsabilidade; e os EUA, anterior bastião destes valores, numa postura cada vez mais permissiva, desregulada e de conveniência política, desfaz o seu. É o AML um obstáculo ao crescimento ou à inovação política, ou o garante da integridade financeira e um ativo estratégico e reputacional? A integridade do sistema financeiro global está em risco, a escolha sobre como prosseguir não é apenas técnica: é política, ética e civilizacional.