
A Rússia está a recrutar crianças nas regiões ocupadas da Ucrânia, transformando-as em soldados através de programas como o Yunarmia (Juventude Armada) e os campos "Voin" (Guerreiro). Esta estratégia, que combina doutrinação ideológica, treino militar e instrumentalização religiosa, não é apenas uma violação grotesca dos direitos humanos: é um espelho perturbador dos métodos nazis da década de 1930 e um alerta para a Europa.
Os paralelos históricos são inquietantes. Tal como as Juventudes Hitlerianas, que preparavam jovens para a guerra através de culto à obediência, treino paramilitar e ódio ao "inimigo externo", o Kremlin está a recorrer à endoutrinação militarizada de crianças a partir dos 8 anos, ensinando-lhes táticas de combate, operação de drones e primeiros socorros em cenários de batalha, oferecendo-lhes, em troca, reconhecimento social, uma vez que a participação nestes Yunarmias (exércitos jovens russos) oferece acesso privilegiado a universidades e carreiras estatais, replicando a lógica de ascensão social vinculada à lealdade ao regime. Este treino e esta recompensa, são enformados por um revisionismo histórico, através da distribuição de manuais escolares nas zonas ocupadas, que glorificam o imperialismo russo e justificam a invasão da Ucrânia, ecoando a manipulação nazi do passado germânico.
Os resultados desta manipulação genética são previsíveis. Tal como a Wehrmacht (forças armadas do exército nazi)– cujos oficiais, segundo documentos históricos, acreditavam no "perigo judaico-bolchevique" –, os jovens russos e ucranianos das zonas ocupados estão a ser moldados para ver a guerra como um "dever sagrado".
Aliás, a instrumentalização do “sagrado” e da religião é outra das peças deste complexo puzzle. Uma espécie de fusão entre a cruz e a AK47, em que a Igreja Ortodoxa Russa legitima a guerra em “campos de verão religiosos”, que ensinam crianças a operar armas sob a retórica de "valores tradicionais", promovem o culto a Putin, que é retratado como defensor da "civilização cristã" contra um Ocidente "decadente", numa fusão entre messianismo religioso e expansionismo geopolítico, e funciona como braço de inteligência, uma vez que, segundo os serviços de segurança suecos, as paróquias no estrangeiro são usadas para recrutar espiões e disseminar propaganda.
Este sincretismo entre fé e militarismo não é novidade. A Alemanha nazi recorreu a capelães militares para justificar o extermínio, tal como hoje os padres ortodoxos abençoam tanques russos.
Os riscos para a Europa de uma tempestade perfeita são, por tudo isto, mais do que evidentes. As múltiplas ameaças que resultam da combinação da construção deste fanatismo juvenil, num contexto de expansão territorial e instrumentalização religiosa, vão desde a geração de combatentes desumanizados – só na região de Lugansk, por exemplo, programas como o Voin preparam 12.000 crianças para integrarem o exército russo, normalizando a violência –, à guerra híbrida transnacional, através de "agentes russos descartáveis", recrutados via Telegram, para fazerem ataques incendiários e cibernéticos na Europa, e à promoção da erosão da coesão europeia para fragilizar a resposta coletiva, tirando partido das divisões internas e da dependência da NATO, e cujo melhor exemplo é a resistência húngara às sanções.
Um estudo recente do Instituto Kiel estima que a Europa precisa de recrutar 300.000 novos soldados, apenas para dissuadir a Rússia. Contudo, o verdadeiro desafio é ideológico, porque precisa de combater uma máquina de propaganda que fabrica mártires desde a infância.
Ou seja, as estratégias europeias de defesa têm de ir para lá do rearmamento e, assim, evitarmos os erros dos anos 30 do século XX. Isto é, a Europa tem de acelerar a integração da Ucrânia na NATO, enquanto elemento dissuasor único e credível, pois inviabilizaria futuras anexações. Tem de investir em contrapropaganda educativa e financiar plataformas que desmontem narrativas revisionistas, especialmente em língua russa, e tem de incrementar as sanções, nomeadamente nas sanções direcionadas à indústria bélica, como forma de bloquear o acesso da Rússia a componentes eletrónicos e metais raros, responsáveis por 68% da sua produção militar.
Por outro lado, para além da já anunciada mobilização industrial de guerra e do investimento de 800 mil milhões de euros até 2030 para colmatar lacunas em defesa aérea e munições, vai ser preciso recuperar o serviço cívico-militar obrigatório e seguir o exemplo de países como a Suécia, que já prepara os seus cidadãos para "nunca se renderem", com a distribuição massiva de manuais de sobrevivência a todos os cidadãos.
Como dizia o presidente da CGD numa recente conferência, “não estamos numa época de mudança, mas sim numa mudança de época” em que a Europa não pode esquecer as lições do passado.
Em 1945, o mundo jurou "nunca mais" permitir a doutrinação de crianças para a guerra. Contudo, oito décadas depois, a Rússia prova que a história não só se repete como se moderniza. É por isso que a Europa não precisa apenas de mais tanques, mísseis ou militares. Precisa, sim, de uma estratégia de resistência cultural que una dissuasão militar, apoio à sociedade civil russa e proteção das crianças raptadas na Ucrânia.
Como alertava Hannah Arendt, o totalitarismo avança quando transforma crimes de Estado em rotina administrativa. Combater essa normalização é a fronteira mais urgente de todas.