
Podemos elevá-la à categoria de princípio cívico. Uma sentença comunitária. Um robusto e válido imperativo categórico que devia mesmo, pensando bem, converter-se em preceito constitucional, ratificado na Assembleia da República por uma maioria mínima de dois terços.
O português acorda tarde para tudo e queixa-se de quem faz o mesmo. Em vez de prever ou planear, ele refila. Prefere a buzina ao despertador. Valeria a pena pensar nessa doença crónica de que Portugal padece que é muito se lamuriar de tudo aquilo que não soube preparar a tempo.
Parecem inevitáveis as situações em que Portugal buzina porque não está disposto a acordar mais cedo. Saúde, Justiça, Defesa, Ambiente, aeroportos, alta-velocidade, não faltam exemplos. O domínio da educação é particularmente rico.
Cada tiro, cada melro
Abundam as medidas que, apesar das críticas sonoras e atempadas que se ergueram, redundaram em desastres formidáveis. Por surdez seletiva, arrastaram-se as escolas durante décadas para um torpor e uma ineficiência clamorosos. Recordemo-nos de alguns destes derrames legais.
(Lei n.º 60/2005)
A proliferação de reformas curriculares inconsequentes, verdadeiros oxímoros legislativos, produzindo uma completa ininteligibilidade do sistema, cada vez mais amaneirado, enfadonho e paradoxal. Recorde-se como ilustração, o programa, hoje antipatriótico, de aposentação antecipada de professores, concebido com o propósito de “rejuvenescer” a classe, ao mesmo tempo que a Caixa Geral de Aposentações penalizava quem se reformasse antecipadamente.
(Lei nº 35/2007)
A perfídia boçal do processo de avaliação de professores, burocrática e destituída, que opôs professores contra professores, esgravatando-se uns e outros para distinguir qual deles era “Muito Bom” ou “Excelente”, agravados com a futilidade leviana de os dividir em “titulares” e “não titulares”.
(Decreto-Lei nº 75/2008)
O nascimento dos mega agrupamentos escolares que decapitaram aldeias e lugares, retirando-lhes equipamentos, massa crítica e recursos humanos que lhes conferiam ainda alguma identidade e atratibilidade.
(Decreto-Lei nº 137/2012)
Fica completa a extinção dos conselhos executivos. Equipas dirigentes efetivamente sufragadas por eleição livre, exemplos de vivência democrática em toda a Europa, são substituídos por poderes unipessoais aprovados por um colégio de eleitores escolhidos muitas vezes pelo próprio candidato, nomeadamente em caso de “recandidatura”.
A fisga da escola
O resultado destes e outros delírios foi o terem gerado um sistema educativo que aposta mais em produzir a “geração mais habilitada e diplomada de sempre” do que a “geração mais capaz e conhecedora de sempre”. Um sistema que não persegue o conhecimento, a curiosidade, o entusiasmo, a descoberta. Antes vive de espasmos convulsivos por notas de acessos à universidade, essa incubadora de diplomados que vivem em casa dos pais.
O aparecimento de novos modelos de estudo que recorrem a tecnologias de inteligência generativa serve agora de mote para repensar o sistema educativo e a sua estrutura curricular. Anda muita gente entusiasmada – e ansiosa - com isto.
O carácter transversal do conhecimento exige que se buzine menos e que se acorde para o que temos em mãos. E indesmentível que os nossos miúdos morrem de tédio. Lentamente. Alguns deles, milhares deles, acham mesmo que a escola só pode ser aquilo que é hoje.
Uma boa parte dos professores de todos os graus de “ensino” estão também convencidos do mesmo. Acham mesmo que a cada vez mais exígua “cultura geral” dos nossos miúdos – e dos nossos professores - se deve a uma desformalização do ensino, e que antigamente isto e aquilo. Não é verdade. Estamos é mergulhados numa sopa cultural de estrepitosa mediocridade. A escola é visivelmente impotente perante um mundo que a cerca e esmaga com mísseis de bagatela, ogivas de artifício e bombardeamentos de esperteza saloia. A escola só dispõe de fisgas. Fisgas de rotinas, notas e diplomas.
Faltam professores ou faltam estudantes?
Todos os professores o sabem: temos milhões de alunos e apenas uns poucos milhares de estudantes. Podemos dar-nos ao luxo de não querermos saber porquê? E, no entanto, sabendo como virar o bico ao prego, não viramos.
Sabemos que os miúdos são surpreendentes quando lhes damos a oportunidade de, por exemplo, poderem escolher o que querem estudar. Basta passear pelas escolas portuguesas. Por todo o país encontramos casos, sempre tão solitários como bem sucedidos, de miúdos a produzir entusiasmo e a encher de esperança muitos dos cansados corações dos seus professores.
Nada é melhor do que vê-los a mexer em coisas que eles mesmos escolheram aprender. Uns e outros. Alunos e professores. Este é o caminho que gradualmente devemos perseguir. Provavelmente, é também o caminho para acabar de vez com o problema da falta de professores.
E se a ausência de professores numa disciplina pudesse ser resolvida pela execução de outras tarefas igualmente significativas que promovessem uma espécie de autonomia de processos, uma nova sorte de empreendedorismo escolar?
Há estradas novas nas escolas
Que ninguém se engane: a qualidade de uma aula mede-se pela quantidade de tempo que um professor está calado. Nada é mais empolgante do que ver um conjunto de miúdos afanosamente envolvido em trabalhos de escola.
Já todos os professores viveram esta sensação. Como é isto possível? Como podemos nós replicar essa euforia, essa veemência? Perguntem a quem faz isto nas escolas. Todos os dias. Sem câmaras por perto. Por todo o país se descobrem caminhos metodológicos e formatos curriculares novos, sempre com lotação esgotada.
Abrem-se espaços de experimentação, salas de processos, ateliers de manualidades, oficinas de silêncio, quintas pedagógicas de arte pública, open spaces de trabalho de equipa, incubadoras empresariais, estúdios de literatura e gabinetes de cinema, oficinas de maquetagem digital, world café de declamação, parlamento de poesia, laboratório industrial, ginásios de filosofia, salas de musculação retórica, bibliotecas de som e ruído, assembleias de matemática, estúdios de programação digital, ágoras de ética e justiça, e por aí fora.
Precisamos de recuperar o regozijo de saber coisas porque sim e por mais razão nenhuma. Precisamos de emprestar tempo – que é dinheiro - às aspirações dos nossos miúdos. Eles vêm. Eles vêm sempre ter connosco. Nem sequer é preciso empurrar. Mas para isso é preciso saber deixá-los ir. Orientá-los de forma que saibam até onde querem chegar, mas não, nunca, caminhar em seu lugar. Precisam de errar e de descobrir.
E, a propósito, temos de saber resistir à tentação de replicar as “boas práticas”. Pelo facto iniludível de que são “boas” justamente porque não foram replicadas e porque, as mais das vezes, não são, sequer, replicáveis. Apesar dos obstáculos e os adamastores, estes espaços nasceram, sobrevivem e proliferam porque germinam em solo seu, em terra própria.
A escola serve para produzir ou para reproduzir?
A extinção em 2012 da disciplina de Área de Projeto, (Decreto-Lei n.º 139/2012) com dois tempos letivos por semana para cada turma, representou um dos mais duros golpes neste caminho.
A então Área de Projeto representava um fecundo caminho de renovação curricular, de abertura à comunidade e de rejuvenescimento do trabalho escolar.
Não haja aqui inefabilidades; havia também quem fizesse dela um espaço de absoluta irrelevância. É assim em tudo, infelizmente. Mas decidiu-se extinguir a disciplina porque se confundiu a úlcera com o estômago. É sempre mais fácil dinamitar do que construir. Tenha este espaço curricular a designação que tiver, ele revela-se hoje cada vez mais inadiável e estratégico.
Um lugar de trabalho de projeto, livre de bloqueios curriculares. Espaços de sinergia, de união de talentos, de esforço conjunto, de colaboração, empatia, exigência e de produção em equipa, desafios de missão partilhada. Ainda por cima é de gente desta que as empresas precisam.
A verdadeira autoridade da escola é a de partilhar responsabilidades e industriar oportunidades. É uma soberania poderosa, esta que a escola detém. Chega a parecer que decidimos que a não deve exercer em nome de receitas que notoriamente não funcionam.
Repita-se: morre-se de tédio em milhares de salas de aula portuguesas. Não há paciência. Sabemos como dar a volta a isto tudo e não damos porque achamos que as coisas devem ser como são, porque sempre assim foram. Vivemos acima das nossas posses. Vivemos à espera que o futuro não chegue.
O filão mignon
Conferir autoridade aos professores implica conceder-lhes também autoridade em quantidade suficiente para que a possam partilhar. É um filão de generosidade à espera de ser garimpado. E sabemos como.
O trabalho de projecto assume hoje uma envergadura que não pode ser subestimada. As chamadas DACs (Domínios de Autonomia Curricular) são o parente envergonhado, impotente, desta transversalidade. Temos de tirar conclusões práticas da velha máxima pela qual todos gostam de aprender mas ninguém gosta de ser ensinado.
Todos os caminhos reflexivos do labor escolar mais contemporâneos se inclinam para a importância da apropriação sólida, voluntária, autónoma, orientada, do conhecimento por parte dos miúdos em formatos que valorizam a individualização, o trabalho em rede e em grupo, convidando o jovem a gerar conhecimento e agir perante realidades que ele mesmo desvenda, analisa e apresenta à sua escola.
Democracia, responsabilização, soberania, planeamento e prospectiva têm de ser a gramática estável de um sistema escolar. Temos um formidável exército de miúdos à nossa espera. Se lhes faltamos isto afunda-se ainda mais. Ou despertamos ou continuamos a buzinar.