Quando os líderes europeus pensavam que a grande notícia do dia seria o anúncio de maior (possibilidade de) investimento em defesa na União Europeia, mais um, dado em conferência de imprensa por uma Úrsula Von der Leyen em pose de grave, eis que são surpreendidos pela notícia da suspensão (ou mesmo fim?) da ajuda militar americana à Ucrânia. Uma traição que ficará na História da infâmia como glória do Presidente Trump.

Quando a Europa se prepara, mais uma vez ou finalmente, para dizer que há-de ter capacidades de segurança robustas e pode dar garantias de segurança à Ucrânia, Donald Trump decide que a melhor forma de terminar a guerra é dando garantias de insegurança à Ucrânia no imediato, parando a ajuda militar; dando garantias de reabilitação política e económica à Rússia, sem qualquer tipo de exigências, cedências ou recriminação ao agressor; e garantias de desprotecção aos europeus.

Esta manhã, em Bruxelas, Paris ou Berlim, mas também em Londres, Otawa ou Ancara, a consciência de que os Estados Unidos da América de Trump têm um interesse geopolítico desalinhado do interesse dos seus aliados é cristalina. E ficou também claro que estão disponíveis para o impor com brutalidade e traição. De hoje em diante, os europeus, canadianos, turcos e britânicos podem falar dos amigos e aliados americanos, mas nem eles, nem a administração dos Estados Unidos nem nós acreditamos nisso. Nem a Rússia. Nem a China.

Tudo isto levanta várias questões que são, ao mesmo tempo, urgentes e de médio prazo. As três mais importantes são sobre a relação entre europeus (ou membros da NATO, em geral) e os Estados Unidos da América; sobre as consequências para a Rússia; e sobre a Europa.

Quanto à relação com os americanos, muitos dirão que esta não é a primeira nem será a última vez que os aliados estão desalinhados. No Iraque, no Vietname, na criação de Israel e, exemplo que os “realistas” gostam de usar, na Crise do Suez já aconteceu. E nalguns casos com brutalidade. Tudo isso é verdade. Mas esta circunstância na relação transatlântica tem uma característica única: é o seu pressuposto que está em causa. Os aliados na NATO sempre tiveram diferenças. É uma aliança entre países com Histórias e interesses diferentes, não é um clube recreativo nem um grupo de amigos. Mas havia um pressuposto fundamental: a mesma identificação da ameaça (a União Soviética, até à sua extinção) e a consideração de que a segurança da Europa era tanto do interesse dos europeus quanto do interesse estratégico dos americanos. Que, além disso, preferiam ter a europa defendida por si a ter a Europa demasiado autonomizada. É essa realidade que está em crise. A América de Trump não vê na Rússia de Putin uma ameaça e não vê na Europa, que considera woke, um aliado estratégico. Essa transformação é clara. O que significa que os aliados europeus de Trump, de Órban aos activistas nas redes sociais, são uma quita coluna americana na Europa. Mais perto da Rússia do que Londres, Paris, Berlim ou Bruxelas. A relação pode um dia vir a ser restaurada, e não pode ser desfeita por nós, mas por agora não vale quase nada.

Quanto à Rússia, há uma vitória e dois equívocos. A vitória é óbvia. Mais do que poder ter vencimento parcial na guerra, Moscovo ganha mais um amigo. Passa de Estado pária que precisa de Pequim, de Pyongyang e Teerão para combater um vizinho mais pequeno para um protegido de Xi Jinping e Donald Trump. Um dos equívocos é que não fica afastado da China, fica reabilitado, com margem de segurança duplicada e sem medo das consequências. O outro é que não tem motivos para parar. Os países nórdicos, os países bálticos e a Polónia, assim como a Moldávia e a Geórgia devem estar a fazer graves contas à vida.

Sobra a terceira questão, a Europa. A Europa da União Europeia não serve para responder a esta crise. Não tem os britânicos, não tem os turcos, e tem os eslovacos e os húngaros, cujo alinhamento com Pequim, Moscovo e Washington clarifica qualquer dúvida que possa haver sobre o que se está a passar. O que fazer, então?

A União Europeia, a que anunciou disponibilidade para investir em segurança e defesa faz falta e faz parte da resposta. A que António Costa convocou para reunir na próxima quinta-feira tem de estar nesta equação. Mas as instituições que existem não foram preparadas nem estão prontas para esta situação. A Europa precisa de um renascimento económico e de uma reinvenção de segurança. Uma e outra coisa não se fazem num dia (nem se fez nos últimos anos, quando a direcção ia sendo evidente) e não se fazem com os processos lentos e limitados da União Europeia. E em tempo de crise não se criam Instituições, isso é depois. Nos momentos de crise inventam-se soluções com o que há. Nos próximos tempos, e sem pôr em causa a União Europeia, alguns líderes europeus terão de o ser, terão de liderar. E outros terão de seguir. É por isso que é muito mais importante o Canadá e a Turquia terem estado em Londres do que Montenegro não ter estado. Sobre Portugal não há dúvidas, embora exista, necessariamente, uma enorme incerteza sobre o que será o nosso futuro neste redesenho euro-atlântico, mas essa é uma questão interna, não para discutir em Londres. O mais importante é que a Europa nunca nos fez tanta falta. Nem na pandemia.