A vida é um sopro. Dá voltas e voltas, as mais inesperadas e nos momentos mais repentinos. Testa a resiliência do ser humano ao limite dos limites, mas também se diz que as grandes batalhas são para se dar aos grandes guerreiros. Então e se forem duas batalhas em simultâneo?

Souza foi rasteirado pelas peripécias da vida, mas levantou-se. Voltou a brilhar, no último fim de semana, e marcou o golo decisivo na vitória do Freamunde sobre o Penamaior (1-0). Para trás ficaram o maior desafio para um atleta, a rotura do ligamento cruzado anterior, e um dos maiores desafios para o ser humano, o cancro.

O avançado, de 33 anos, era uma pessoa perfeitamente saudável, como fez questão de recordar ao zerozero. «Estava na época 2023/24, estava muito bem fisicamente e de saúde», contou-nos. Em poucos meses, porém, tudo mudou. Primeiro a lesão no joelho, depois o diagnóstico de leucemia. O mundo ruiu.

«Fui passear e comecei a sangrar da boca e do nariz»

A conversa com Souza é recheada de datas, números específicos. Sabe todas elas de cor e salteado. Como poderia esquecer? «Lesionei-me a 29 de outubro [n.d.r. saiu aos 34 minutos frente à UD Lagoas]. Fui ao hospital e disseram que era uma entorse, mas não sabiam a gravidade. O clube ativou o seguro, fiz uma ressonância e confirmaram a rotura de ligamento, menisco e uma fissura no osso», lembrou. Problema número um.

«Fiz a cirurgia a 5 de dezembro. Fiquei em casa de um casal de amigos, porque vivo sozinho e não tinha forma de fazer quase nada. Fiquei em casa deles, ajudaram-me em tudo e depois voltei para casa, porque a fisioterapia fica aqui perto do clube. Tenho amigos aqui e tenho parentes como se fossem de sangue. O meu irmão, Leandro Souza, vive no Luxemburgo. A minha tia Joana ajudou-me muito e o meu patrão, mesmo eu não me tendo magoado no trabalho, não deixou que me faltasse nada», acrescentou.

Cirurgia feita. A partir daí, o caminho parecia fácil de prever: meses de recuperação, fisioterapia e um regresso aos relvados como novo. Eis que surge novamente uma rasteira da vida. «No dia 5 de janeiro, fui passear ao parque, de canadianas, só para sair um pouco de casa. Senti-me fraco, mas pensei que era da cirurgia. Comecei a sangrar da boca e do nariz, mas às vezes isso acontecia-me nas mudanças de tempo, entre o calor e o frio. Pensei que era só isso», recordou.

@Arquivo Pessoal

Não era só isso. Naquele dia, Souza tinha recebido o primeiro sinal de que vinha aí o momento mais desafiante da vida. «Passaram uns dias e foi agravando. Acordava todo suado durante a noite e o meu patrão disse para ligar para a Saúde24. Disseram-me para ir para o hospital, mas o meu patrão disse para não ir assim de qualquer forma, para não apanhar nenhuma bactéria. Levou-me ao médico privado dele, que me passou medicação, um exame aos pulmões e análises. Comecei a melhorar com os medicamentos, o pulmão estava limpo e já nem fiz as análises», confessou.

A melhoria foi sol de pouca dura. «Comecei a sangrar pelos dentes, fiquei com manchas pretas na boca e a febre nunca baixava», descreveu-nos. A 21 de fevereiro de 2024, enquanto o Freamunde perdia no reduto do GDC Ferreira, Souza estava em casa, pensativo. «Estava em casa e decidi que ia fazer as análises no dia seguinte. Segunda-feira, dia 22, fiz as análises e fui à fisioterapia. Estava lá quando me ligaram a dizer que tinha uma alteração nas plaquetas e que devia procurar um médio urgentemente. Fiquei em pânico», disse-nos.

Em pânico, sim, mas longe de imaginar o que seria. «Nem passava pela minha cabeça. Liguei ao médico, disse para passar na clínica. Cheguei lá e ele disse-me que me ia fazer uma carta e que provavelmente ia precisar de fazer transfusão de sangue, mas nunca pensei que fosse leucemia, achava que seria alguma coisa parva. Fui naquele dia mesmo para o hospital, à noite. O meu patrão deixou-me no hospital e disse que esperava por mim, mas parece que eu estava a pressentir. Disse-lhe que não precisava de esperar, que ficasse com a minha mala e eu mandava alguém ir buscar se precisasse dela.»

Souza já não deixou a unidade hospitalar. A noite passou e a pior notícia chegou com o nascer do sol: «De manhã, no hospital de Penafiel, foi confirmada a leucemia. Fiz uma transfusão de plaquetas, porque tinha as defesas baixas, e fui transferido para o hospital de São João do dia 26 até ao dia 10 de março.»

«Tomava 140 comprimidos em 14 dias»

No hospital, o avançado enfrentou complicações. «Provavelmente teria de mudar de quimioterapia e isso mexeu muito comigo. Fiquei inchado. Tive também experiências de vida, porque eu estava como estava, mas via gente muito pior e eu ajudava. Havia um senhor no meu quarto com um linfoma cerebral, que não conseguia dormir à noite e não conseguia chamar ninguém. Às vezes, estava consciente e noutras não dizia coisa com coisa. Os médicos perguntaram-me se queria mudar de quarto, mas eu quis ficar para o ajudar. Depois mudaram-no de quarto e quando o fizeram, ele arrancou o cateter. Soube depois que faleceu e isso mexeu comigo», lembrou.

Claro devoto, Souza virou-se para Deus nos momentos difíceis: «Deus é muito bondoso comigo, porque não estava vivo se não fosse ele. Lesionei-me, não aceitei a lesão e perguntava-lhe o porquê, mas a pergunta deve ser 'para quê?'. Tudo tem um propósito e depois de algum tempo, fui diagnosticado com a leucemia. Fiquei sem chão, mas a única forma era lutar.»

@Arquivo Pessoal

A recuperação da rotura do ligamento cruzado anterior ficou para segundo plano. «Comecei a ter hemorragias e as minhas pernas ficaram atrofiadas, muito magras», disse-nos. O foco estava, claro, no problema oncológico que lhe sugava toda a energia. «Comecei a quimioterapia em fevereiro e só terminei em setembro. Fazia quimioterapia mês sim, mês não e tomava 140 comprimidos em 14 dias, todos os meses. Tomava cinco de manhã, cinco depois do almoço e cinco à noite, 14 dias por mês, de fevereiro a setembro.»

Tentar conciliar isto tudo com a lesão do joelho era tarefa praticamente impossível, disse-nos. «Chegava a casa muito cansado, só queria estar na cama. E tinha sempre muitas infeções, tinha de andar sempre de máscara. Ia à clínica de fisioterapia quando conseguia, mas havia dias em que a quimioterapia me deixava exausto. Os meus amigos tinham muito cuidado comigo. Eu percebia-os, mas não gostava que me tratassem como doente. Eu estava vivo», disse.

Souza é uma pessoa grata. Grata por ter a oportunidade de continuar a desfrutar da vida e do futebol. Os agradecimentos a Deus são constantes ao longo da conversa. O caminho foi turbulento, com constantes obstáculos, mas o jogador de 33 anos fê-lo de queixo levantado.

«Acordei e disse que ia marcar. Estava destinado»

«Acabei a quimioterapia em setembro e em outubro já estava a fazer fortalecimento. Em janeiro comecei a treinar com o grupo, mas tive uma rotura que demorou um mês a curar. Voltei e tive uma microrrotura que demorou outro mês. Voltei agora novamente e tive a felicidade de não me lesionar mais. É normal que o meu corpo reaja de certas maneiras depois de tanto tempo parado e tanta medicação», contou-nos, em relação à retoma do contacto com a bola e com o grupo de trabalho.

No último sábado, chegou a vez de Souza voltar a viver a alegria contagiante de quem tem na bola o grande amor. A voz começa a ficar embargada à medida que as recordações surgem na mente. Recordações felizes, de um regresso que nem o melhor dos guionistas podia ser capaz de escrever. O resultado final? Um triunfo por 1-0 sobre o Penamaior.

«Acordo sempre muito cedo e sempre que jogo acordo a dizer que vou marcar. Acordei, disse a mim mesmo que ia marcar e parecia que estava destinado. Estava destinado a isso. Eu estava no banco e o mister, na segunda parte, mandou-me aquecer. Quando voltei para o banco e coloquei a camisola... foi uma sensação gloriosa. Agradeci a Deus por poder voltar a sentir aquilo, sentir os aplausos, a energia. Toda a gente podia ver tudo o que passei, mas venci. Vencemos juntos. Marcar o golo foi inexplicável, foi uma mistura de emoções.»

Do outro lado da linha telefónica, a emoção é percetível. Os olhos não veem, mas a voz fala por si. Souza está emocionado e imaginamos que a soltar uma ou outra lágrima. Uma última questão: é o golo mais importante da carreira? «É o mais importante da minha vida toda. O melhor golo foi poder voltar ao campo e sentir aquela energia, poder dizer que consegui.»

Conseguiu, Souza. Agora é tempo de voltar a ser feliz... de bola colada ao pé.