
Maio 2004, dia 26. O FC Porto é campeão europeu com pompa e circunstância, numa final de sentido único vs. Monaco, em Gelsenkirchen (3:0). No brilhante percurso de 13 jogos, entre os seis da fase de grupos e os sete a eliminar, zero derrotas fora das Antas. Zero, insistimos. Na final, Vítor Baía faz zero defesas. Z-e-r-o.
Junho 2004, dia 2. Exactamente uma semana depois do êxito europeu, José Mourinho é apresentado como treinador do Chelsea. Quando lhe perguntam se está preparado para a Premier League, o ar de enfado do treinador é uma relíquia. A resposta, então, nem se fala. «Acabei de ser campeão europeu (...) i'm the special one.»
Setembro 2004, dia 19. Segundo empate seguido do Chelsea, agora em casa, vs. Tottenham (0:0), e o campeão Arsenal a isolar-se com dois pontos à maior. No flash-interview, Mourinho faz das suas. «They put the bus in front of the goal.» A expressão ganha adeptos e, uma semana depois, a agência noticiosa Reuters escreve mesmo que o Middlesbrough 'put the bus in front of the goal' para evitar perder por muitos com o Chelsea.
Outubro 2004, dia 16. Única derrota do Chelsea em toda a campanha, vs. Manchester City. Golo de Anelka, de penálti, conquistado pelo próprio num lance com Paulo Ferreira. O Arsenal, campeão invicto na época anterior, é cada vez mais senhor do primeiro lugar, com cinco pontos de avanço.
Novembro 2004, dia 6. Um golo de Robben é o suficiente para derrubar o Everton, em Londres, e o Chelsea assume pela primeira vez a liderança isolada. Seis vitórias nos oito jogos seguintes permitem fechar o ano com cinco pontos de avanço sobre o Arsenal.
Fevereiro 2005, dia 2. Robben fixa o 1:0 em Blackburn numa noite em que Paulo Ferreira faz mais um penálti, este defendido por Cech (a remate de Dickov). É a oitava vitória seguida e o Arsenal já está a 13 pontos de distância. Arsène Wenger reconhece: 'Estamos fora da corrida do título.'
Março 2005, dia 5. O Chelsea continua nas suas sete quintas, a ganhar a torto e a direito, desta vez em Norwich (3:1). O golo sofrido por Cech é o primeiro há 1028 minutos -- eis um novo recorde de imbatibilidade na Premier League, outrora pertença a Peter Schmeichel (695).
Abril 2005, dia 30. A quatro jornadas do fim, o Chelsea ganha em Bolton por 2:0 (bis de Lampard) e sagra-se campeão inglês pela primeira vez em 50 anos. No banco, José Mourinho vibra como ninguém. O título é seu, muito seu. E continua a sê-lo. Agora, 20 anos depois, o treinador português responde ao nosso e-mail. Eis as 16 perguntas, à moda antiga, com 11 titulares e cinco suplentes.

zerozero - Quando se dá o primeiro contacto com o Chelsea?
José Mourinho - Março / Abril, por altura dos quartos-de-final da Champions.
zz - O Chelsea sempre foi a primeira escolha?
RMT - Eu ouvia todos, como ainda hoje faço – por respeito e por querer analisar sem me precipitar. Queria a Premier, mas havia Itália. Quando me reuni com o Chelsea, passou a ser a primeira escolha.
zz - Qual a sua relação com o futebol inglês, antes de 2004?
RMT - Trabalhei anos com um grande senhor do futebol inglês [Bobby Robson]. Sabia muito por ele: a cultura, as tendências, as evoluções.
zz - Alguma vez tinha visto o Chelsea jogar ao vivo?
RMT - Jogámos pelo Barcelona contra o Chelsea na Champions [1999-2000, quartos-de-final: o Barcelona passa após prolongamento], jogámos na pré-época em Stamford Bridge pelo FC Porto e fui ver a meia-final Chelsea-Monaco [um dia depois do 1:0 do FC Porto ao Depor, na Corunha]
zz - Qual a sua maior surpresa da realidade 'in loco' do futebol inglês? (entre organização da Premier League, adeptos, arbitragem, competitividade, análise desportiva, camaradagem e por aí fora)
JM - Surpresa pouco, porque conhecia muito. Mas a paixão e o sentir ‘in loco’ bateram forte.
zz - Arsenal (campeão inglês sem derrotas em 2004), Manchester United e Liverpool (campeão europeu em 2005). Antes de começar o campeonato, qual o seu adversário mais preocupante?
JM - O invencível Arsenal e o gigante ferido Manchester United.
zz - Curiosamente, nenhum destes três ganha ao Chelsea -- Liverpool e United até perdem os dois jogos. A sua única derrota em todo o campeonato é vs. Manchester City de Keegan, penálti do Anelka. Como foi lidar com esse 1:0?
JM - Anormal era nunca perder. Anormal foi aquele Arsenal em 2003-2004. Queríamos ser campeões e nunca nos preocupámos em perder o foco – nem um jogo que fosse. Aconteceu esse 1:0 com o Manchester City. Uma migalha
zz- A sua relação com os adeptos do Chelsea ia para lá dos jogos? Tem alguma história sui generis?
JM - A melhor foi nessa meia-final europeia que fui ver a Londres, com o AVB [André Villas-Boas]. Já se falava muito que eu seria o próximo treinador e um pequeno grupo gritou-me na entrada do estádio «vai para Portugal que aqui queremos o Ranieri».
«Drogba era o 9 para ganhar a Premier League»
zz - 'They put the bus in front of the goal' é o seu desabafo na ressaca do 0-0 vs. Tottenham. Era costume as equipas jogarem de forma fechada com o Chelsea?
JM - Era muito difícil isso acontecer em Inglaterra. Mesmo na Taça, competição que a nossa geração seguia com atenção em Portugal. Mesmo nos jogos entre equipas da Premier e as de divisões inferiores. Não sabia na altura, mas Chelsea e Tottenham eram os rivais históricos de Londres. Levaram um massacre, mas puseram mesmo um autocarro de dois andares lá na área. O resultado: 0-0.
zz - Qual a vitória dessa época que lhe dá mais gozo?
JM - Em Bolton, porque o Chelsea ganhava aí a Premier.
zz - Corrija-me, se estiver enganado: começa a época em 4-4-2 e, só depois, em Outubro, é que passa para 4-3-3 e vai assim até Maio? Se sim, porquê a mudança?
JM - Fui campeão europeu pelo FC Porto a desenvolver muito o 442 em losango e gostava muito das dinâmicas criadas. Cheguei a pensar nisso e fui por ai com bons resultados no início da época, mas a perceber melhor o que era Lampard, o que era Duff e Robben e Joe Cole... Não podia obrigar gente a jogar num sistema onde as suas capacidades não eram evidenciadas. Posto isto, Lampard era um 8 e Cole um ala, não eram 10. Robben e Duff eram tão bons que não podiam estar no banco. Perderam minutos Tiago, Smertín, Gudjohnsen, mas ganhou-se uma equipa mais forte
zz - A entrada do wikipedia no Chelsea 2004-05 é assim ó: The season was historic for the vast number of Premier League records set during the season. The list of achievements included; most points won in a season (95), most away wins in a season (15), most clean sheets kept in a season (25), fewest goals conceded away in a season (9), most wins in a season (29) and fewest goals conceded in a season (15). Vinte anos depois, o que sente a ler este parágrafo?
JM - Grande equipa, a quem ainda hoje não lhe dão o lugar que merece na história da Premier.
zz - O Chelsea contratou Paulo Ferreira, Cech, Robben, Kezman, Drogba, Tiago, Ricardo Carvalho e Nuno Morais. Todos, todos ideia de Mourinho? Algum mais complicado de negociar do que outro?
JM - Cech e Robben chegaram comigo, mas negociados antes. Drogba foi duro, porque era muito caro e o seu prestígio em Inglaterra não estava reconhecido. Só por insistência minha é que o Chelsea assinou com ele. Num período menos tecnológico, tive a sorte de jogar contra ele e, depois, de ter viajado várias vezes para ver o Marselha. Era ele o 9 para ganhar a Premier.
zz - O Chelsea dispensou Bogarde, Verón, Jimmy, Desailly, Melchiot, Petit, Stanic, Gronkjaer, Carlton Cole, Crespo, Zenden e Ambrosio. Todos, todos ideia de Mourinho?
JM - Todos ideia minha. A ideia era fazer gente como Terry e Lampard darem o passo em frente. Precisava romper com o passado com lideranças quase institucionalizadas, acabar com um ciclo e iniciar outro. Eram bons jogadores, mas, por vezes, as equipas têm necessidade de romper com o passado.
zz - É campeão em Bolton, faz precisamente 20 anos a 30 de abril. Qual a sua imagem mais fresca desse dia?
JM - Ver o Lampard a driblar o guarda-redes e eu a festejar o título antes dele passar a bola para a baliza aberta.
zz - É campeão europeu pelo FC Porto em 2004, só com dois estrangeiros no onze vs. Monaco (Carlos Alberto + Derlei). Menos de um ano depois, é campeão inglês pelo Chelsea, só com dois ingleses no onze (Terry + Lampard) e outras sete nacionalidades. Como é que se passa do oito para o 800 sem beliscar minimamente a palavra eficácia?
JM - Empatias no futebol são mais importantes do que se possa pensar.