Sabíamos que o novo equilíbrio resultante das eleições ao Parlamento Europeu (PE) não augurava o melhor para a defesa do ambiente. O programa eleitoral do Grupo Popular Europeu (EPP), dominante no hemiciclo de Estrasburgo, desde cedo mostrou ao que vinha. O enfraquecimento da sociedade civil, cortando o financiamento de projetos de conservação da natureza, pode ser apenas o primeiro passo. A sessão do plenário, hoje em Estrasburgo, apontou a mira às organizações da sociedade civil, tantas vezes incómodas. Dos dois lados do Atlântico, a cidadania permanece sob ameaça.

Numa tentativa de domesticar em particular as organizações não governamentais de Ambiente(ONGA), as forças mais conservadoras do PE, com a extrema-direita à cabeça querem ainda aprovar um (inédito) regulamento para as ONG, rever o estatuto de proteção dos grandes carnívoros e duas diretivas fundamentais na história do ambiente na União Europeia, a Diretiva Aves, que data de 1979, e a diretiva Habitats, de 1992.

No Parlamento, assistiu-se a um autêntico exercício de gaslighting: as ONG foram classificadas como perigosos lobistas que manipulam, sem controlo, as instituições europeias. Bem esteve Ana Catarina Mendes, ao afirmar que o debate não era sobre lobbying ou transparência e apontando às forças mais conservadoras do hemiciclo: “vocês não querem continuar a financiar as ONG porque as consideram prejudiciais” e exigindo maior supervisão aos que “defendem os interesses privados” e não o bem comum.

Infelizmente poucos eurodeputados portugueses – a exceção foram ainda André Rodrigues (PS) e Catarina Martins (BE) – apoiaram ou subscreveram propostas de apoio à cidadania, designadamente a proposta de emenda 32 do italiano Antonio Decaro, solicitando à Comissão Europeia (CE) que reveja as suas diretrizes, adotadas em maio do ano passado, defendendo que “a sociedade civil e as ONG desempenham um papel fundamental na definição de políticas que beneficiam a sociedade e o nosso ambiente” e instando a Comissão a rever as suas orientações, considerando que a interrupção deste financiamento prejudicaria seriamente a voz da sociedade civil no debate público e causaria um grave risco para a reputação da Comissão.

Com efeito, qual a melhor forma de enfraquecer quem combate ativamente, em incontáveis casos de forma voluntária e, portanto graciosa, anos a fio, em prol da biodiversidade, da segurança climática e contra as infindáveis formas de poluição? Cortando no financiamento de estruturas já por si frágeis e que lutam com uma crónica falta de recursos para levar a cabo a sua missão, crescentemente ampla e complexa. Daí a ameaça de corte aos LIFE.

O programa LIFE foi criado em 1992 e é o instrumento, por excelência, de financiamento da UE para o ambiente e ação climática, tendo por objetivo “contribuir para a aplicação, atualização e desenvolvimento da política e legislação da UE em matéria de ambiente e clima através do cofinanciamento de projetos com valor acrescentado europeu”.

Já antes, no dia 9 de dezembro, Piotr Serafin, Comissário para o Orçamento, Anti-fraude e Administração Pública, explicara perante a Comissão do Controlo Orçamental do PE que a Comissão não pretende "censurar", garantindo que “foi uma decisão dos co-legisladores criar subvenções porque as posições das ONG foram vistas como sendo valiosas.” Hoje em Estrasburgo, admitindo que os procedimentos contratuais podem ser melhorados, o Comissário recordou que as ONG “combatem a corrupção, defendem os direitos humanos e prosseguem os fins da UE”, acrescentando que “a sua perspetiva ajuda a Comissão e o Parlamento a tomar decisões bem informadas.”

O que não tem impedido a narrativa de alguns eurodeputados de chegar ao delírio, num claro ataque às organizações civis, acusadas de “colocar em causa a integridade das leis da UE”, de “falta de transparência”, de violar “o princípio da neutralidade da CE”; de “conflito de interesses”; de “falta de legitimidade”, de “falta de supervisão e de controlo na forma como os projectos são seleccionados” e de, ao defenderem o ambiente, trazerem “riscos reputacionais” à CE.

De resto, os números falam por si: para o período 2021-27, o orçamento destinado ao programa LIFE (5,4 mil milhões de euros) representa apenas 0,3% do orçamento total da UE, incluindo o quadro financeiro plurianual e o Next Generation EU. As ONG ambientais e as organizações da sociedade civil beneficiam anualmente de 15,5 milhões de euros, ou seja, 0,006% do orçamento da UE.

Numa carta endereçada a Ursula von der Leyen, o Gabinete Europeu de Ambiente (EBB), com outras organizações da sociedade civil que representam em conjunto 50 milhões de cidadãos, considerou que “a participação da sociedade civil não só é essencial para o futuro da Europa, para uma forte participação do público e para a resiliência da democracia europeia, mas é também um requisito legal nos termos dos Tratados e da Convenção de Aarhus. Além disso, apoia os compromissos da UE assumidos coletivamente pela Comissão Europeia, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho no sentido de viver bem dentro dos limites do planeta e reforça o projeto europeu.”

Efetivamente o Tratado da União Europeia (TUE) estipula que ”as instituições são obrigadas a manter um diálogo aberto, transparente e regular com a sociedade civil”. Também a Convenção de Aarhus “obriga a UE e os seus Estados-Membros a proporcionar oportunidades de participação do público durante a preparação de planos, programas e políticas relacionados com o ambiente.”

De igual modo, o regulamento do programa LIFE garante “o reforço das capacidades dos actores públicos e privados e a participação da sociedade civil”. Os beneficiários elegíveis, de resto, incluem tipicamente não apenas ONGs, mas também outras entidades, designadamente universidades, autarquias, agricultores e outras comunidades locais.

Através da DG Ambiente e da DG Clima, a Comissão assume a responsabilidade de gestão dos LIFE, tendo delegado a sua implementação em duas agências, a Agência Executiva para o Clima, Infraestrutura e Ambiente (CINEA) e a Agência Executiva para as Pequenas e Médias Empresas (EASME). A atribuição de verbas a organizações sem fins lucrativos obedece aos critérios fixados em regulamento e implica auditorias anuais. Como diz a missiva à CE, “os beneficiários aderem a normas rigorosas de responsabilização, incluindo práticas de monitorização, comunicação de informações e auditoria para demonstrar a utilização transparente dos fundos públicos.”

O EPP, que tem instigado a CE nesta autêntica cruzada contra a cidadania, deixou claro no seu programa a necessidade de regular as ONG para prevenir, ou fomentar, assuntos como “as portas giratórias, a transparência no financiamento e nos donativos, a luta contra o branqueamento de capitais, a limitação da interferência estrangeira, a independência da influência política e económica, a denúncia de irregularidades e estruturas de governação transparentes.”

Ao anunciar, já para o segundo trimestre de 2025, medidas como a “gestão” das populações de grandes carnívoros e de outras espécies, “no interesse das zonas rurais”, a Comissão incluiu no seu programa de trabalho a revisão do estatuto de proteção “dos ursos e outras espécies”, à semelhança do que já aconteceu, sem qualquer fundamento científico, com o lobo.

O executivo comunitário, o mesmo que, nas suas Orientações políticas para 2024-2029 prometia “intensificar o empenho [da UE] nas organizações da sociedade civil que têm conhecimentos especializados e um importante papel a desempenhar na defesa de questões específicas, na defesa dos direitos humanos e assegurando que a sociedade civil seja melhor protegida no seu trabalho” parece ter sido agora capaz de estancar ante o precipício. Perante a enxurrada de citizenwashing, Piotr Serafin deixou mesmo um aviso aos parlamentares mais radicais: “é nossa responsabilidade proteger a alta qualidade do debate público. Acredito que podemos fazer melhor.”