1. O que é um país seguro? O que define um país dito seguro não é a ausência absoluta de crimes, mas sim ter menos crimes do que outros países semelhantes. Em países tidos como seguros continua a haver roubos, violações, assassinatos e rixas com frequência. Em 2023 foram reportados mais de mil crimes por dia em Portugal, 38 dos quais considerados violentos. Nesse ano, tivemos em média dois homicídios por semana e dez violações. Isto pode parecer muito, e cada crime destes é uma tragédia que deve ser evitada, mas é menos do que dez ou 20 anos antes e menos do que na maioria dos países europeus, ajustando pela população. Se tivéssemos a mesma taxa de homicídios da Hungria, seriam três por semana, quatro por semana se tivéssemos a taxa da Bulgária, perto de 100 por semana se tivéssemos a taxa de homicídios da África do Sul. Não há nenhum país que não tenha crime, mas há uns que têm mais do que outros. Os que têm mais crimes em percentagem da população são ditos inseguros. Os que têm menos crimes são tidos como seguros. Por isso, contrariar a constatação de que um país é seguro com notícias de um, dois ou até 40 crimes até pode servir para chamar a atenção nas redes sociais e gerar cliques nos sites de notícias, mas é um argumento falacioso que se aproveita da falta de capacidade de abstração da generalidade das pessoas perante acontecimentos com uma grande carga emocional. Afirmar que um país não é seguro recorrendo a notícias de crimes é como dizer que os EUA não são um país rico porque tem pessoas pobres e sem-abrigo. O que define um país rico não é a ausência de pobres, mas ter menos pobres do que os outros e dar-lhes mais oportunidades de deixarem de o ser.
  1. Há lugar para preocupações de segurança num país seguro? O facto de um país ser relativamente seguro não significa que não tenha zonas mais perigosas que podem merecer atenção especial das forças de segurança. Todos os países têm zonas mais e menos seguras. Um país seguro pode ter zonas mais inseguras, tal como países relativamente inseguros têm zonas bastante seguras. Para quem vive em zonas com taxas de homicídio semelhantes às da Bulgária, adianta pouco saber que o resto do país é a Suíça. Chamar a atenção para isso, pedir medidas que combatam insegurança localizada, não contradiz em nada o facto de um país, como um todo, ser seguro. Também pode ser importante prestar atenção às tendências, mesmo num país seguro, para ser capaz de as combater e impedir que um país seguro se torne inseguro. Apesar de ser importante ter capacidade de abstração e olhar para os grandes números, é um erro desvalorizar as percepções de insegurança, mesmo que elas não tenham fundamento estatístico por dois motivos. Primeiro, porque as estatísticas podem falhar se alguns crimes não forem reportados. Ninguém dirá que há 20-30 anos havia menos violência doméstica do que hoje, mas penso que será consensual que era muito mais tolerada e menos reportada do que é hoje. O facto de haver poucas queixas nessa altura não significa que não fosse um problema provavelmente pior do que é hoje. Alguns crimes podem ficar por reportar, seja por aceitação, seja pelo sentimento de que não vale a pena reportá-los, e esconder a verdadeira dimensão da criminalidade. Em segundo lugar, porque a perceção, mesmo não estando estatisticamente fundamentada, tem um efeito psicológico nas pessoas, afetando a sua qualidade de vida.
  1. As estatísticas do número total de crimes são um indicador fiável de segurança? As estatísticas de crimes totais são um indicador demasiado bruto da segurança de um país ou cidade porque junta crimes de gravidades distintas e com efeitos diferentes na sensação de insegurança. Para a estatística do número total de crimes é tratado da mesma forma um homicídio e uma burla por MBWay, que têm impactos muito diferentes nas vítimas e no sentimento geral de insegurança. Se no próximo ano tivéssemos menos 1000 burlas por MBWay e mais 100 homicídios, o número total de crimes diminuiria, mas dificilmente alguém se sentiria mais seguro.
  1. Publicar a nacionalidade dos criminosos é xenofobia? Ter dados é sempre importante para alimentar a discussão pública. Os factos não são xenófobos. São apenas factos. Ter números pode ser importante para ajudar a desmontar narrativas no espaço público e informar melhor a opinião, qualquer que seja a realidade que revele. Dito isto, a divulgação desses dados não será uma panaceia e terá sempre várias limitações. A primeira limitação é não se conhecer o suspeito na grande maioria dos crimes reportados aquando da publicação dos relatórios. Tirando crimes mais graves (como homicídios) que são investigados de forma mais célere, e crimes onde a identificação do suspeito é mais fácil (como violência doméstica ou consumo sob efeito de álcool), é normalmente complicado ter a identificação do suspeito para muitos dos crimes. Essa limitação já está refletida hoje no RASI que publica dados sobre o perfil dos suspeitos de crimes (sexo, por exemplo), mas só para os crimes em que a identificação do suspeito é mais fácil. Em relação a outros crimes, como roubos, furtos e burlas, não são publicados dados de identificação de suspeitos porque, em muitos casos, não existe sequer suspeito para identificar. A segunda limitação decorre de o assunto ser demasiado emocional e já ter uma carga política excessiva, pelo que mesmo com mais dados dificilmente alguém mudará de opinião. Se por acaso se comprovar pelos dados publicados que os estrangeiros têm a mesma taxa de criminalidade dos portugueses, logo surgirá o argumento de que o que importa verdadeiramente é a naturalidade. Se houver dados da naturalidade que desmintam a teoria, logo virão dizer que é uma questão de etnia, e por aí fora. Em último caso, dirão sempre que os dados estão errados ou são manipulados. Quem quer muito acreditar nalguma coisa, pouco lhe adiantam os dados. Em terceiro lugar, será importante cruzar estes dados com outras características dos suspeitos, sendo o sexo possivelmente a mais importante. Avaliando pela população prisional em Portugal, os homens têm uma propensão a cometer crimes cerca de 13 vezes superior às mulheres. Noutros países, existem diferenças semelhantes. Portanto, se a população imigrante de determinada nacionalidade for maioritariamente composta por homens será de esperar uma taxa de criminalidade maior em média, sem que isso se relacione de todo com a nacionalidade.
  2. A liberdade e a segurança são valores absolutos? Ter posições absolutas sobre a dicotomia entre segurança e liberdade pode dar boas frases para os livros de história, mas funciona mal na prática. Nem a liberdade é um valor absoluto do qual nunca se abdica em prol da segurança, nem a segurança é um valor absoluto do qual nunca se abdica em prol da liberdade. Se a liberdade fosse um valor absoluto, não haveria limites de velocidade em nenhuma estrada do país. Se a segurança fosse um valor absoluto, não se poderia andar a mais de 30km/h em nenhuma estrada. Limitamos a liberdade das pessoas andarem à velocidade que entendem, apesar de sabermos que a maioria das pessoas que ultrapassassem os limites não causariam acidente nenhum, porque temos consciência de que velocidades excessivas aumentam a probabilidade de um acidente grave acontecer. Por outro lado, apesar de haver um limite, é permitido ainda assim andar a velocidades elevadas que, em caso de acidente, causam mortes e lesões graves porque se entende que o pequeno benefício de muitos compensa o custo elevado de poucos. Poucas pessoas são a favor que se possa andar a 180km/h dentro de localidades ou que não se possa ultrapassar os 50km/h na autoestrada. Portanto, a maioria percebe e interiorizou que a dicotomia existe e é preciso fazer escolhas. O mesmo se aplica a outras áreas em que a segurança e a liberdade estão em confronto.
  1. As rusgas são métodos aceitáveis que equilibram os valores da segurança e liberdade? Por vezes para garantirmos a segurança, sacrificamos temporariamente a liberdade de pessoas inocentes. As rusgas são um exemplo disso. Se soubermos que uma criança raptada foi levada para dentro de um prédio, é normal que se faça uma rusga a esse prédio, imobilizando e violando o espaço privado de residentes inocentes e sobre os quais não recai nenhuma suspeita. O mesmo acontece quando existe uma suspeita de haver droga ou explosivos num autocarro que pode levar à imobilização dos passageiros durante a revista, mesmo que a maioria deles sejam inocentes. Isto são métodos aceitáveis e equilibrados, mesmo numa democracia liberal.
  1. A rusga do Martim Moniz foi justificada? O facto de ser justificável fazer rusgas, violando a liberdade de pessoas inocentes, quando existe uma suspeita suficientemente forte, não justifica que se façam em qualquer circunstância ou que todas as rusgas sejam justificadas. É importante, mais uma vez, que exista um equilíbrio entre segurança e liberdade. Esse equilíbrio exige que só se viole temporariamente os direitos de inocentes se existir uma possibilidade forte de a ação identificar suspeitos de crimes graves. Na famosa rusga do Martim Moniz não foi tornada pública nos primeiros dias qualquer suspeita específica sobre o grupo de pessoas imobilizadas, o que despertou dúvidas naturais sobre a sua necessidade (mais tarde a Direção Nacional da PSP apresentou justificações aparentemente válidas para a sua realização). Até a tentativa de justificar a rusga nas semanas seguintes com notícias de crimes na mesma zona fez pouco sentido. Se a rusga tivesse visado apenas pessoas inocentes nunca poderia ser justificada à posteriori por crimes cometidos por outras pessoas. Quando muito, esses acontecimento posteriores, só demonstrariam a ineficácia da tal rusga.
  2.  A rusga do Martim Moniz justificou as acusações de racismo? Independentemente de considerações legítimas sobre a desproporcionalidade da rusga em relação às suspeitas identificadas, foi um erro crasso todo o empolamento em torno dela, especialmente a conotação xenófoba que quiseram imputar. Não há qualquer indicação de motivação xenófoba por parte das autoridades. Não se conhece a nacionalidade das pessoas imobilizadas (a não ser que queiram derivar a nacionalidade de uma fotografia, e tenho a certeza de que não querem fazer isso) e as duas únicas pessoas identificadas nessa rusga eram portuguesas. Também não há qualquer indício de as pessoas que estavam naquele local àquela hora terem sido tratadas de forma diferente de acordo com a etnia ou nacionalidade. Para além de injustificado, a estratégia de querer transformar qualquer questão com a polícia numa questão de racismo é contraproducente. Alimentar um clima em que se coloca imigrantes ou minorias contra a polícia, e vice-versa, pode ajudar algumas agendas políticas mais radicais, mas é terrível para o país e para a própria segurança. Pior, insistir nessa ideia pode transformá-la numa profecia autorrealizada, porque só a possibilidade dela ser verdade gera desconfianças de parte a parte. Esse clima de desconfiança mútua só agravará atitudes defensivas de ambos os lados, ameaçando as próprias minorias e dificultando o trabalho da polícia.
  1. Que cuidados precisamos de ter quando as pessoas se começam a sentir inseguras? A perceção de insegurança, corresponda ou não à verdade estatísticas, tem efeitos negativos na vida das pessoas. As pessoas podem deixar de sair, divertir-se, até investir, se tiverem uma grande perceção de insegurança. Compensá-la com medidas que aumentem a perceção de segurança pode ser importante. No entanto, por muito que as perceções de insegurança aumentem (seja porque a criminalidade aumenta efetivamente seja porque simplesmente se torna mais divulgada), não devemos deixar nunca de equilibrar as necessidades de segurança com o valor da liberdade. Em 2020-22, percebemos o quanto as pessoas estão disponíveis para abdicar da sua liberdade e da dos outros (principalmente da dos outros) quando temem pela sua segurança, mesmo quando as limitações à liberdade têm pouco ou nenhum impacto na segurança.
  1. Quando se revelam os verdadeiros defensores da liberdade? Não há momento em que seja mais impopular defender o valor da liberdade do que quando esta se contrapõe (ou aparenta contrapor-se) à segurança. A autopreservação é um dos instintos mais básicos do ser humano e um dos que carregam maior carga emocional. Ainda que de forma mais gradual do que no choque da pandemia, nos próximos tempos poderá ser criado um clima político propenso ao sacrifício desnecessário de liberdades em prol de uma falsa sensação de segurança. Em breve, defender a liberdade contra instintos securitários excessivos poderá tornar-se difícil e impopular, especialmente se houver um aumento da criminalidade. Mas o apreço pela liberdade não se demonstra apenas quando é fácil e popular defendê-la. O verdadeiro apreço pela liberdade revela-se quando se é capaz de a defender — a própria e a dos outros — nos momentos em que isso é mais difícil e impopular.

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