“Atolados há mais de um século no mais funesto dos ilogismos políticos, esquecemo-nos de que a unidade nacional, a harmonia, a paz, a felicidade e a força de um povo não têm por base senão o rigoroso e exacto cumprimento colectivo dos deveres do cidadão perante a inviolabilidade sagrada da família, que é a célula da sociedade; perante o oculto da religião, que é a alma ancestral da comunidade; e perante o culto da bandeira, que é o símbolo da honra e da integridade da pátria”.

Quebramos estouvadamente o fio da nossa História, principiando por substituir o interesse da Pátria pelo interesse do partido, depois o interesse do partido pelo interesse do grupo, e por fim o interesse do grupo pelo interesse individual de cada um”.

                                        Ramalho Ortigão

Mais propriamente, são 204 anos. Foi no já remoto dia 24 de agosto de 1820. Mas está atual... Os poderes públicos de hoje que se esforçam por não comemorar ou sequer lembrar sucessivas datas importantes da História de Portugal (tentam até em muitos casos, subvertê-las), não se pouparam a esforços e encómios para celebrar esta data. E nisso estão certos, pois a data deve ser muito bem lembrada e estudada, eventualmente, não pelos motivos quase unanimemente apresentados, mas por outros que consubstanciam a origem dos males que nos afetam ainda (ou sobretudo), hoje em dia.

Por uma vez o Presidente da Assembleia da República, aquando do ducentésimo aniversário, teve um momento de lucidez e atribuiu aos revolucionários de 1820 as origens da Democracia como a conhecemos hoje em Portugal, deixando de falar na triste figura histórica do defunto presidente Soares, como sendo o “pai da democracia”. O ridículo não mata, mas mói.

De facto 1820 representa o consumar da primeira revolução vitoriosa em Portugal e a intervenção dos militares na vida política do país. Devemos ter em conta, porém, as revoltas falhadas de 1817, em Pernambuco e Lisboa, esta última protagonizada pelo General Freire de Andrade (Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano) o qual já tinha participado num incidente com uma unidade militar, em junho de 1803, em Campo de Ourique, juntamente com o seu “irmão” Marquês de Alorna, justamente aquele que foi escolhido por Junot para ir comandar a Legião Portuguesa que foi combater por Napoleão...

As principais razões da revolta nem sequer se podiam atribuir ao “Absolutismo”, regime político importado da França de Luís XIV e que se pode dizer ter sido implantado em Portugal no tempo de D. Pedro II, quando este deixou de reunir as Cortes Gerais do Reino, a partir de 1698. O Absolutismo é uma teoria política onde se defende que “alguém”, neste caso o Rei, deve ter o poder absoluto e é independente de qualquer outro órgão. Por outras palavras, o soberano concentrava nas suas mãos todos os poderes do Estado. Entre os mais insignes defensores desta teoria, encontravam-se Maquiavel; Jean Bodin; Jaime I de Inglaterra; Jacques-Bénigne Boussuet e Thomas Hobbes.

A acompanhar esta teoria política, existiu a doutrina do “Direito Divino dos Reis”, que defendia que a autoridade do governante emana diretamente de Deus e que, por isso, só Deus o podia destituir. A Monarquia Absoluta nasceu com Luís XIV, o “Rei-Sol”, logo após a morte do seu ministro principal, o Cardeal Mazarino. Diz-se que nessa altura o Rei voltou-se para o seu chanceler e declarou: “Senhor eu lhe pedi que se reunisse com meus ministros e secretários de Estado para dizer que até agora eu deixei o falecido senhor cardeal conduzir os assuntos de Estado; já é hora que eu próprio governe. Vocês nos auxiliarão com vossos conselhos, quando eu vos pedir”. Em seguida, proibiu os ministros de expedir qualquer assunto sem sua ordem.

Em Portugal nunca houve um absolutismo deste tipo, já que havia uma grande tradição municipalista e corporativa, desde o início da nacionalidade e que se desenvolveu por toda a Idade Média. Também era tradição reunir Cortes, ficando o modelo aperfeiçoado após as Cortes de Leiria, de 1254. Um modelo, aliás, que considero mais “democrático” do que aquele que temos hoje em dia...

Quando significativamente D. Miguel I tentou recuperar o modelo antigo, em 1828, já foi tarde… Foi um erro grave da Dinastia de Bragança (pois o modelo foi importado e não tinha tradição em Portugal), apesar de só se ter revelado no seu maior esplendor com D. José I, através do Marquês de Pombal. Sem embargo, de este ser considerado por muitos (e defendido pela Maçonaria) como sendo o percursor das ideias liberais... E apesar de ter encarnado a figura de um “déspota esclarecido” tem a maior estátua existente no país, que culmina numa avenida chamada da Liberdade. A ideia nasceu na I República, mas foi o Estado Novo que a terminou e inaugurou.

Penso não andar longe da verdade ao dizer que, em 1820, 90% da população, podendo não ser totalmente absolutista, convivia bem com o sistema (idêntico se passava, nas vésperas da República e do 25/4/74...). A Revolução de 1820 surge então pelas circunstâncias. O país estava literalmente destruído pelas invasões francesas; arruinado o seu comércio por causa do fim do monopólio do mesmo com o Brasil, por via do tratado de 1810, que a coroa portuguesa se viu obrigada a assinar com a Grã-Bretanha para ter a proteção inglesa; e por estar órfão da Família Real que tinha retirado (e não fugido, como aleivosamente se ouve dizer) para o Rio de Janeiro.[1] Mas a Família Real demorou em regressar, não só por se sentir lá bem, como provavelmente por causa dos múltiplos problemas existentes no território e suas fronteiras.

Entretanto deve ter-se em conta um facto da maior relevância e quase esquecido, que foi a construção, em 1815, de uma nova, original e brilhante conceção política para o país, que passou a denominar-se “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”. Algo inédito em todo o orbe e que visava a unidade e coesão do todo português, espalhado pelo mundo. Com a Corte e o governo do outro lado do Atlântico foi criada uma regência em Portugal cuja cabeça era o Marechal Beresford, que acumulava com o cargo de Comandante-em-chefe do Exército Português, estando ainda a maioria dos principais postos entregue a oficiais ingleses.

Ora toda esta situação desagradava ao povo e com especial ênfase, à oficialidade portuguesa. Os franceses tinham sido expulsos definitivamente do país em 1812 – infelizmente não os conseguimos trucidar a todos! – mas deixaram por cá as ideias da Revolução Francesa, até então apenas defendidas por um pequeno núcleo de nobres e burgueses e alguns comerciantes estrangeiros normalmente associados em lojas maçónicas. Estas lojas enviaram, inclusive, uma delegação a Sacavém dar as boas vindas a Junot, em 1807, como “libertador da Pátria”. Eu diria que representa uma cena de traição à Pátria…

Ora foi justamente um “afrancesado” e na altura Grão-Mestre da Maçonaria (que se viria a dividir em “inglesa” e “francesa”), o nosso conhecido Gomes Freire, que liderou uma tentativa de Golpe de Estado para depor a Regência e expulsar os ingleses do Exército. Mas houve uma delação (curiosamente de dois maçons) e Gomes Freire e mais onze implicados foram enforcados. Foi uma morte infamante. Mais tarde todos foram glorificados pelos liberais e passaram a ser conhecidos por “Mártires da Pátria”. A nova conspiração foi organizada no Porto, cidade burguesa (comerciante) por natureza antiga, onde mais se fazia sentir os efeitos da destruição do comércio, sobretudo com o Brasil. E onde, porventura, havia menos vigilância das autoridades.

A conjura foi urdida numa organização secreta, fundada em 22 de janeiro de 1818, para preparar uma revolução, significativamente chamada de “Sinédrio” (o supremo tribunal judaico que condenou Jesus Cristo), e desta vez houve o cuidado de se garantir o apoio de unidades militares[2]. Pontificava no Sinédrio o Desembargador da Relação Manuel Fernandes Tomás que goza de fama de doutrinador e pessoa íntegra, que morreu pobre (Figueira da Foz, 30/6/1771 – Lisboa 19/11/1822). As operações decorreram de uma forma simples e sem oposição (o Marechal Beresford estava ausente, de visita ao Rio de Janeiro onde tinha ido solicitar mais poderes). Foi feita uma proclamação equilibrada, que não levantou objeções imediatas. E com a anuência das forças vivas de Lisboa, logo a 15 de setembro, as coisas pareciam bem encaminhadas, tendo-se constituído uma Assembleia Constituinte encarregada de elaborar uma constituição (onde é que eu já vi isto?).

A conjuntura internacional favorável também não foi estranha ao deflagrar da “revolução”. Havia um governo liberal em Inglaterra; não se vislumbrava qualquer ameaça da Santa Aliança e tinha havido uma revolta liberal em Espanha, em 9 de março de 1820, que repôs a Constituição de Cádis, de 1812, que tinha sido revogada em 1814. O problema foi o “dia seguinte”. Ou seja, o dia anterior, pois é neste que normalmente não se prevê o que fazer depois. Logo se vê… Onde é que eu também já vi isto?

Bom, no dia seguinte, foi-se gerando o caos, de tal maneira que alguns dos principais defensores do Liberalismo vieram a maldizer as consequências da sua implantação como foram os casos de Herculano, Garrett e Luz Soriano.

Oficial Piloto Aviador (Ref.)

[1] Tratado de Comércio e Navegação, de 19 de Fevereiro de 1810. Este Tratado piorou as condições dos decretos de 28 de Janeiro e de 11 de Junho de 1808, que foram revogados. O que permitiu aos ingleses dominarem o comércio com o Brasil, estendendo as mesmas condições a todos os portos portugueses na Europa, na África e na Ásia.

[2] O Sinédrio não era propriamente uma loja maçónica, mas a maioria dos seus membros eram maçons. Nele pontificavam personalidades como José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e João Ferreira Vieira.