Vou encarnar o papel de um "peixinho fora de água" e falar de… energia. Perdoem-me os entendidos! Ainda assim, visto que boa parte dos agricultores estão, efetivamente, fora de água — pois não a têm… – é uma posição na qual habitualmente somos encontrados.

Um apontamento recente do Ministro da Agricultura reiterou, grosso modo, que a Agricultura "é uma questão de segurança alimentar e defesa" em linha com, por exemplo, o que sabemos ser a Reserva Agrícola Nacional – um instrumento de salvaguarda da nossa segurança alimentar e integrante da estratégia de defesa nacional.

Na verdade, quando, também recentemente, se decidiu tomar medidas no âmbito do Plano REPower EU, devido à bárbara invasão da Ucrânia pela Rússia, imediatamente a Agricultura foi chamada às lides na identificação feita das albufeiras associadas aos aproveitamentos hidroelétricos sujeitas à constituição de reserva estratégica (1), que incluía, por exemplo, o "nosso" Alqueva (não falando de Castelo Bode ou do Cabril que, o quanto antes, deviam passar a aproveitamentos de fins múltiplos).

Ora, tanto se fala hoje em dia do Projeto Água que Une – o projeto que unirá hidraulicamente o país e que, porventura, possibilitará a gestão integrada de um recurso tão importante como a água – tem de ser explicitado como este pode (deve?) ser determinante no futuro da gestão da nossa rede e abastecimento de eletricidade e o potencial que vem com esta oportunidade.

Na verdade, é interessante apontar, que o que A Água que Une quer proporcionar é bastante análogo ao que já existe com a Rede Elétrica de Serviço Público – cada um de nós recebe energia em sua casa proveniente de outras regiões e a interrupção desse fornecimento lançaria o absoluto caos. A gestão tem de ser feita a nível de sistema, nacional, e não consegue ser gerida por "núcleos", daí termos um operador de rede. Na verdade, a ligação da atividade agrícola com a água é tão íntima quanto a dependência que cada um de nós, e as nossas respetivas atividades económicas, têm da eletricidade (2) e a disparidade espacial e temporal das afluências hídricas também exige uma gestão integrada.

Assim, a aposta na Água que Une não pode ser separada de um robusto investimento em fontes de energia renováveis, mas, principalmente, deverá ser aproveitado para espoletar o desenvolvimento de uma enorme capacidade de armazenagem de energia, sendo que este poderá ser um dos maiores mecanismos de financiamento de todo o projeto.

Neste ponto (por favor, que venham os entendidos responder), a armazenagem de energia em larga escala permite a participação nos Serviços de Sistema, parte integrante dos mercados de energia elétrica e responsáveis pela sua segurança ao garantirem o equilíbrio em tempo real entre a geração e o consumo de energia. Se pudermos armazenar em escala, poderemos participar (3).

Ou seja, os agricultores, avançando a Água que Une, por via das infraestruturas hidráulicas que desta advirão, podem (devem?) agregar-se como clientes ativos de eletricidade que não só produzam eletricidade para autoconsumo ou para a rede, mas também a armazenem e, com esta, possam oferecer (se bem que não há almoços grátis…) serviços de flexibilidade a uma rede que tanto deles precisa.

É a própria REN que o explica: a produção de energia a partir de bombagem permite aumentar a garantia de abastecimento nos períodos secos e permite armazenar os excedentes de produção da eólica e solar para utilização em horas de maior consumo – absorvem-se excedentes (que em 2021 se fixaram num máximo recorde mensal de 2.492MW e que em 2023 atingiram 2.474MW) para produção posterior nas horas de ponta do consumo.

Este serviço só se vai tornar mais valioso com o aumento da produção fotovoltaica e eólica, tendência que me parece imparável.

Para dar resposta a esta necessidade nacional, vamos precisar de uma revisão à revisão de junho de 2023 do PNEC 2030 (4) (ou então, limite-se a fazer, num país que já tem planos a mais para as obras não feitas), visto que este, certamente por purismo ideológico do anterior governo, prevê uma absoluta estagnação da potência instalada de energia hídrica – passando de uma potência instalada de 8.141MW em 2022 para… 8.100MW em 2030!

Além de ser mais uma prova de como o anterior governo relegou a Agricultura para 19.º plano e de estar em absoluta contradição com a estratégia que propunham para o regadio (aqui admito que só não tenham previsto este tipo de aproveitamentos de fins múltiplos), principalmente atesta o falhanço em incluir no PNEC 2030 investimento em energias renováveis comprovadamente mais baratas do que outras alternativas (5 e 6).

Em jeito de súmula, entre 2015 e 2022, o investimento privado direto em produção com base em fontes de energia renovável registou uma média anual de cerca de €1.000M (mil milhões de euros), sendo a energia hídrica, a par com a solar, onde se materializou a maior fatia. Se adicionarmos os fundos europeus e a mísera fatia assegurada pelo nosso próprio Orçamento soberano, esta grandeza de valores sobejaria para a Água que Une.

Se a Agricultura, por si, até tem reduzido o seu consumo energético – na ordem dos 7% entre 2012 e 2022 (7), pode agora tornar-se uma alavanca para um investimento necessário para os restantes setores de atividade em Portugal, enquanto financia algo que é intrinsecamente necessário à sua atividade.

Se muitos benefícios têm sido apontados à ideia do Projeto Água Que Une, a armazenagem de energia elétrica, além de assegurar externalidades positivas bastante mensuráveis, poderia servir como um dos seus principais mecanismos de financiamento.

Haja rasgo e ambição!

  1. Resolução de Conselhos de Ministros nº82/2022, de 27 de Setembro
  2. Adaptado de Cultivar 31, Agosto 2024 – Sequeiro, Viticultura e Fruticultura, de Pedro Castro Rego, Armando Torres Paulo e Jorge Soares
  3. Parênteses aqui para notar que, com esta participação, sem dúvida que a governança dos perímetros hidroagrícolas (integrados em Aproveitamentos de Fins Múltiplos) que desta estratégia Água que nos Une surgirão sairía reforçada (sendo este fator da governança aquele que mais prejudica ou, até, coloca em risco, a sustentabilidade de muitos dos perímetros atuais). Adicionalmente, como referido, a própria obra terá um mecanismo adicional de financiamento.
  4. Plano Nacional de Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030) –Atualização/Revisão –Junho de 2023
  5. International Renewable Energy Association – Report: International Renewable Power Generation Costs in 2023 – Levelized Cost of Energy de $0.057/kWh (e tem os LCOE das outras fontes, muitas delas mais caras);
  6. Deloitte – APREN – Associação de Energias Renováveis – Impacto da Electricidade de Origem Renovável – estimam investimentos para dar cumprimento ao PNEC2030 na ordem dos €595/kW para os electrolisadores (H2) e de €150/kW para hidroelétrica c/bombagem.
  7. DGEG – Energia em Números – Edição 2024