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Air Trumpa

Nos anos 90, Trump conseguiu afundar uma companhia aérea em poucos anos. Agora, a dúvida é se não acabará por levar com ele algo muito maior.
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Lusa

O crescimento do setor da aviação nas últimas décadas – desde os fabricantes a empresas gestoras de aeroportos e companhias aéreas – está intimamente relacionado com o mundo comercialmente global, livre e desregulado que a parte do planeta dirigida pelos Estados Unidos concebeu. Esta aviação moderna, interconectada e acessível que conhecemos hoje é o resultado e consequência dessa abolição de fronteiras: nascemos num país, estudamos noutro e, ao longo da vida, trabalhamos em vários com relativa facilidade. Tudo isto – associado a alguma prosperidade económica mais ou menos bem distribuída – gera tráfego comercial de passageiros pelas mais diversas razões.

Nada disto acontece em economias fechadas como a da Coreia do Norte, Myanmar ou Venezuela. Basta lembrar que nos anos 80 também nós  precisávamos de um visto para viajar para Nova Iorque, que havia um muro que nos dificultava as viagens para o Leste europeu e que existiam sérios entraves à circulação de bens, capitais e pessoas fora do espaço nacional, até mesmo para atravessar a fronteira em Vilar Formoso.

Como não poderia deixar de ser, o magnata Donald Trump viu nesta evolução e neste setor da aviação uma oportunidade para o seu império e criou a sua companhia aérea, a Trump Shuttle, com uma frota de 25 aviões Boeing 727 destinada a servir o triângulo Nova Iorque, Washington e Boston de hora em hora com um serviço dedicado aos passageiros empresariais. Durou pouco: de 1989 a 1992, os prejuízos acumularam-se e o lucro nunca aconteceu, em parte devido à alta do preço do petróleo no seguimento da invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990 e devido à Guerra do Golfo e ao corte de despesas em viagens empresariais que se lhe seguiu. Uma combinação explosiva para o setor que apenas não acontece agora com Trump-presidente porque a promessa do “drill, baby, drill” mantém o preço do jetfuel em níveis aceitáveis.

Se o impacto do “Dia da Libertação” na aviação ao nível do comportamento dos passageiros é ainda uma incógnita, não o é ao nível da cotação das empresas do setor em bolsa, nem o será no preço de venda dos aviões e dos materiais que os compõem. Os Estados Unidos são o primeiro país a ser afetado: é lá que está a sede das cinco maiores companhias aéreas do mundo em termos de frota – American, United, Delta, Southwest e Federal Express – e a sexta maior do mundo, a Ryanair, utiliza uma frota exclusivamente Boeing.

Em Wall Street, a nova era Trump começou a sentir-se bem antes deste dia com as quatro companhias principais a baixarem as previsões de lucro e a perderem valor em bolsa – Delta, United e American tiveram perdas de quase 30% em fevereiro. Na região de Washington, os cortes governamentais e da despesa pública refletiram-se imediatamente no orçamento para viagens e as companhias aéreas tiveram de ajustar a sua capacidade e distribuição doméstica. Nos Estados Unidos, dos 270 milhões de lugares anuais à venda, 249 milhões são domésticos – dez vezes superior ao mercado internacional – daí a sua importância financeira crucial. Se associarmos a tudo isto alguma falta de confiança e contração por parte do setor privado, as companhias são obrigadas a continuar a agir de duas formas: ou cortando capacidade ou baixando tarifa. Com tantos aviões novos para chegar, reduzir voos torna-se, por vezes, uma opção impossível.

Já nos mercados internacionais, o primeiro sinal de alarme começou no Canadá: a capacidade aérea entre os dois países sofreu uma redução de capacidade de até 3.5%, com particular incidência nos meses de julho e agosto. Relativamente à Europa, e enquanto o dólar se mantiver forte, a programação de verão prossegue como planeada, em particular para os mercados de lazer, com destaque para a Itália, o mercado que mais crescerá com mais 260 mil lugares do que em 2024.

Como efeito provável desta incerteza económica e por relação à capacidade instalada – quer no doméstico, quer no internacional – é de prever que, em algum momento, o passageiro americano poderá contar com promoções e tarifas de última hora. Só não sabemos ainda para onde. Se é cedo para avançar com prognósticos seguros sobre o que vai suceder na aviação, há algo que já sabemos do passado: nos anos 90, Trump conseguiu afundar uma companhia aérea em poucos anos. Agora, a dúvida é se não acabará por levar com ele algo muito maior.

Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo

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