"A fortuna do Mundo é serem eles tão poucos,
Porque a Natureza, como aos leões,
Felizmente os fez raros.”
Gaspar Correia, Lendas da Índia
(Referindo palavras do inimigo, sobre os portugueses durante o cerco de Diu, em 1538)
Faz no dia 8 de janeiro de 2025, 123 anos que Mouzinho de Albuquerque faleceu aos 46 anos de idade. Não tendo ele sido futebolista, baladeiro ou estrela rock progressista, tão pouco um politiqueiro vira-casacas e intriguista, dos que por aí abundam ou abundaram, não custa acreditar que a grande maioria dos portugueses não o conhece, nem sequer ouviu dele falar (seguramente aqueles com idades inferiores a 70 anos).
Como ainda por cima se suicidou metendo uma bala na cabeça ("teve a coragem de se meter na sepultura quando começou a derrocada que conheceu, não poder sustar…", no dizer do General Gomes da Costa), em vez de ser por overdose, a sua morte não sugere encómios ou nem palavrosas lembranças dos opinadores de serviço, o principal dos quais passa umas horas semanais num modesto palácio, em Belém.
Nem a propaganda pela eutanásia salva o nosso Mouzinho!
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Por isso é mister começar por dizer umas palavras breves, sobre a figura do Tenente-coronel, da Arma de Cavalaria, do Exército Português, Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque (Batalha, 12/11/1855 - Lisboa, 8/1/1902), descendente de uma das famílias portuguesas mais ilustres.
Quando nasceu, reinava em Portugal o muito prometedor Rei, o Senhor D. Pedro V, que a doença ceifou prematuramente. Durante toda a vida de Mouzinho a situação em Portugal foi de grande perturbação política, social, económica e financeira e por todo o mundo havia ameaças potenciais e reais, à soberania portuguesa dos seus territórios. Mouzinho alistou-se no Exército, em 1871, sendo promovido a Alferes em 1876, após concluir o Curso de Cavalaria na então Escola do Exército.
Em 1884 é promovido a tenente e nomeado Regente de Estudos no Real Colégio Militar; em 1886, embarca para Goa, onde exerceu várias funções, acabando como Secretário-geral do Governo da Índia; em 1890 é promovido a Capitão e nomeado Governador do distrito de Lourenço Marques, cargo que exerceu durante dois anos, após o que regressa à Metrópole, sendo colocado no Regimento de Cavalaria 8 e 4, onde fica até 1895. Em janeiro de 1895 forma esquadrão em Lanceiros 1 e embarca para Moçambique, a 15 de abril.
A 10 de dezembro é nomeado Governador Militar do Distrito de Gaza e a 13 de Março de 1896 é nomeado Governador - Geral, ascendendo, em 27 de Novembro, a Comissário Régio. Chega a Portugal, em 15 de dezembro de 1897, onde é alvo de grandes homenagens e viaja de seguida pelo estrangeiro onde é recebido por altas entidades na Grã-Bretanha e Irlanda; França e Alemanha. Regressa a Moçambique em 22 de abril e entra em conflito com o governo, que lhe cerceia as competências e pede a demissão do cargo, em julho de 1898, regressando a Lisboa onde desembarca a 14 de dezembro.
O Rei nomeia-o Ajudante de Campo e é convidado para o Conselho de Sua Majestade; Aio do Príncipe Real D. Luís Filipe e Oficial-Mor da Casa Real. É alvo de várias homenagens. É promovido a Tenente-coronel do Estado-Maior, em 1901. Possuía 22 condecorações nacionais e estrangeiras, entre as quais duas Ordens da Torre e Espada.
Põe termo à vida, em Lisboa (Benfica), em 8 de janeiro de 1902. Tinha 46 anos e deixa viúva D. Maria José Gaivão Mouzinho de Albuquerque, esposa amantíssima e dedicada, que chegou a chefiar um hospital de campanha, no Chibuto (Moçambique). Sem descendência.
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A vida de Mouzinho foi uma bíblia de pundonor, competência e audácia. E valor. Mouzinho como homem inspirou-se em Robert Clive, Lyautey, Caldas Xavier e Joaquim Durant (Comandante da Cavalaria de Napoleão). Era um homem de carácter e um homem de bem. Era rijo e possuía uma resistência fora do comum à fadiga, ao frio, à fome e era um trabalhador incansável. Não era simpático para o comum das pessoas, que assim não poderiam apreciar a lhaneza do seu trato íntimo. Era autocrata, orgulhoso e capaz de decisões rápidas.
Era leal e possuía grande capacidade de liderança. “Audácia e Método” seria um lema que se lhe aplicaria bem. Não confiava nos políticos de então, que o temiam e não poucas vezes o tentaram derrubar. E como afirmou Júlio Dantas, Mouzinho era grande demais para caber na sociedade portuguesa de então.
Mouzinho foi ainda um excelente Administrador, como é revelado pela sua ação na Índia e Moçambique e estava bastante à frente do seu tempo, sendo adepto da descentralização administrativa e do combate à corrupção. Mas onde Mouzinho mostrou o seu real valor foi como militar e nos combates e campanhas em que participou ou comandou, tendo sempre saído vitorioso. Em todas.
Lembramos, o combate de Coolela; a ocupação do Manjacaze; a pacificação do Maputo; a campanha dos Namarrais, onde se travaram os combates de Mujenga, Naguema, Ibrahimo e Mucuto-Muno; a campanha de Gaza (considerada a melhor realizada no sul de África), onde se registaram os combates de Macontene (que deu origem a ser considerado o Dia da Cavalaria – 21 de julho), Mapulanguene e Calapati; as campanhas da Zambézia, em 1897/8.
Mas foi o “golpe de mão” sobre Chaimite, onde 46 militares caíram sobre o “Kraal” do Gungunhana protegido por 3,000 guerreiros, aprisionando aquele que durante anos, tinha sido um chefe rebelde à soberania portuguesa (uma rebelião fomentada e armada, pelos ingleses). Uma façanha que espantou o mundo de então e que imortalizou Mouzinho para todo o sempre. Chaimite representa assim uma glória exaltante dos nossos brios patrióticos. E bem pode dizer-se que Mouzinho não era dotado de espírito militar, ele era o espírito militar!
Repete-se, a vida de Mouzinho, à parte a forma como se retirou dela – pode considerar-se o que Eça disse sobre Guerra Junqueiro: “concluindo que a vida não lhe convinha, retirou-se dela voluntariamente” – é uma Bíblia de vida. Uma bíblia de pundonor, de nobreza, de altos valores políticos, morais e sociais e de bem - fazer. Por isso os seus escritos ficam e o seu exemplo arrasta.
Mouzinho escrevia bem (e apreciava Eça de Queiroz a quem chamava o “ilustre José Maria”) e deixou-nos, além do livro “Moçambique”, que relata a sua ação como Comissário Régio, três cartas onde revela o seu superior carácter. São elas a carta que escreveu ao Presidente do Conselho, Luciano de Castro, em 1898, aquando da sua demissão de Comissário Régio; a carta que dirigiu ao seu substituto no cargo, Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira, em que coloca o novo governador ao corrente da situação da então colónia, e a carta que dirigiu, em 1901, ao Príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, enquanto seu Aio. Esta carta devia fazer parte do programa escolar, nos primeiros anos do ensino secundário e lida a todos os alunos. Resta a sua morte, que nos ficou a pesar.
No dia aprazado para essa infausta decisão, almoçou no “Turf Club” (ainda existente) ao Chiado. Nele escreveu três cartas, uma para sua mulher, outra para o Conde de Tarouca e a terceira para a Rainha D. Amélia. Saiu, foi a um armeiro na Rua do Ouro (a Casa Reynold’s) e comprou um revolver “bulldog”; meteu-se em seguida numa caleche e mandou bater para a Estrada das Laranjeiras. O cocheiro parou quando ouviu um tiro. Mouzinho estava morto.
As cartas poderiam revelar certamente muito sobre as causas da sua morte. Mas aquela dirigida à mulher não foi lida por ninguém e foi com ela para o túmulo; a escrita ao Conde de Tarouca foi queimada e nunca lida depois da morte deste, por desígnio testamentário; a terceira desapareceu e foi encontrada mais tarde na Torre do Tombo, dizia: “Minha Senhora / Perdoe-me Vossa Majestade e não me ache cobarde pelo que fiz. Mas ser tido em mau conceito, ser desprezado é mais do que posso. Não creio que o suicídio nestas circunstâncias não seja um direito. Minha Senhora! Vossa Majestade nada perde senão um homem que no seu serviço fazia tudo e de tudo era capaz. Mas não poude ser. Paciência. Perdoe-me Vossa Majestade e reze por mim, se acredita que existe alma. Eu não acredito. Beijo as mãos de Vossa Majestade cheio como sempre de reconhecimento e dedicação. Seu maior criado. Mouzinho de Albuquerque”.
Foi, no entanto, a Rainha D. Amélia, que nutria especial afeição por Mouzinho, que melhor levantou o véu do mistério, no livro que escreveu antes da sua morte: “Eu, Amélia, Rainha de Portugal”. Por ele ficámos a saber que era convicção da soberana que Mouzinho pretendeu com o seu sacrifício, pôr fim definitivo às atoardas postas a correr e que atentavam contra a honra de ambos.
Este audacioso, mas refletido, militar português – que seguramente faz parte dos poucos a que se refere a citação inicial de Gaspar Correia – jaz em campa rasa (simples e bonita) no Cemitério dos Prazeres. Pelas suas qualidades militares foi feito Patrono da Arma de Cavalaria e penso que, apesar do desvario dos tempos, ainda hoje é admirado e venerado por todos os parcos militares dessa Arma que ainda subsistem.
Há anos atrás fui visitar a campa e encontrei-a num estado lastimoso; espero que, entretanto, o pouco que resta do Exército Português tenha encontrado o brio necessário para cuidar da mesma.
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Estamos, pois, perante uma dívida relativamente a Mouzinho: cuidar da sua memória. Mas resta ainda uma outra que é consubstanciada no único desejo que deixou à posteridade: ser sepultado no Mosteiro da Batalha, onde foi batizado, desde que a sua mulher pudesse ficar a seu lado. E se a Mouzinho assiste todo o direito em repousar na Batalha – o que nada interfere com a cerimónia ao “soldado desconhecido”, na sala do Capítulo – o mesmo acontece a sua mulher D. Maria José Gaivão Mouzinho de Albuquerque, já que é digna de ombrear com as muitas “Filipas de Vilhena” e “Marias de Lencastre”, da nossa vetusta História.
E como epitáfio para o herói creio que ficariam bem as palavras de D. Carlos I quando soube da sua morte: "De Mouzinho ficará sempre a memória do homem que prestou ao País e ao Seu Rei os mais relevantes serviços."
Assim seja.
Oficial Piloto Aviador (Ref.)