Todas as notícias em primeira mão
Todas as notícias em primeira mão
Todas as notícias em primeira mão

Empresas familiares: o dilema de manter, vender ou fundir

Mesmo as empresas familiares abertas a vender ou comprar, que são na nossa experiência raras, não atacam a sua intenção com a determinação e o suporte profissional que seriam necessários para a levar a bom porto.
Empresas familiares: o dilema de manter, vender ou fundir
DALL-E

Em PME familiares existe normalmente relutância em considerar uma venda ou fusão, por apego emocional ao legado, envolvimento dos acionistas na gestão executiva e preços de venda pouco realistas.

Venda de empresas familiares: um fenómeno raro que gera reações díspares

Não obstante as vantagens da preservação do controlo das empresas familiares de geração em geração, de que tantas vezes temos falado, a decisão da família acionista vai por vezes no sentido contrário. A venda não é de facto frequente e quando uma operação surge cria normalmente agitação, levantam-se sobrancelhas e questiona-se a sabedoria da decisão da família de vender. "Mas se as empresas familiares são melhores e se valorizam mais, porquê vender?" "Eles desistiram, não tiveram a nossa fibra." "Traíram o espírito do legado familiar." "Isto nunca vai acontecer connosco, o nosso legado é eterno e temos muito potencial para crescer."...

Não havendo muitos exemplos, é fácil destacar alguns. A venda do The Wall Street Journal, da família Bancroft, à família de Rupert Murdoch em 2011 foi estrondosa e a alienação do Carinelli Grupo Tecnol, também um grupo familiar verticalmente integrado e líder no Brasil, à maior fabricante e distribuidora de óculos do mundo, a empresa familiar italiana Luxottica, também foi alvo de críticas.

E em Portugal, que casos podemos destacar nos últimos cinco anos? A venda da Dan Cake, fundada em 1978, à Biscuit international (BI), controlada por sua vez por um fundo de investimento, foi um caso muito ventilado. Já a tomada do controlo do fabricante de moldes e peças de iluminação automóvel MD Group por um fundo de private equity foi mais discreta. A venda da Frezite, a histórica empresa especializada em ferramentas de corte, ao Grupo Sandvik ou da Frulact, um dos cinco maiores fabricantes mundiais de preparados à base de fruta para a indústria alimentar, ao fundo Ardian – aliás proprietário da concessionária de autoestradas Ascendi – foram outras duas operações com destaque. Poderá ter havido outras operações desta escala... mas contam-se seguramente pelos dedos de uma mão.

Após a venda, vêm os parabéns da família, colegas, amigos e alguns espectadores do setor. Mas é frequente que se crie um halo de deceção ("Que lástima, uma tradição familiar tão forte ter-se perdido"), de suspeita de a família não ter tido capacidade para gerir o negócio num contexto em mudança, ou mesmo de crítica aberta a uma atitude gananciosa ou desleal dos acionistas face aos objetivos virtuosos gravados a ouro no legado do fundador.

Sim, é verdade que a venda de uma empresa familiar desperta normalmente muitos sentimentos negativos, adversos, mesmo pejorativos. Mas a venda de uma empresa familiar pode e deve ser, na maior parte dos casos, motivo de celebração. Sob certas condições, vender a empresa familiar pode ser a coisa mais inteligente que os acionistas podem fazer para preservar o seu sucesso como uma família empreendedora. E pode ser a melhor coisa que se pode fazer pelo próprio negócio – pelos ativos, pela marca e reputação e sobretudo pelos colaboradores. Muitos acionistas têm relutância em ver a situação desta forma – mas há que afastar tabus e medos, ter uma visão objetiva da realidade e atuar em conformidade.

Os princípios de comportamento saudável dos acionistas face ao negócio

Por princípio, uma família empresarial deve utilizar os seus bens para que sejam produtivos e devolvam valor e satisfação à sociedade e à família. Se uma família tem condições para assegurar que o seu negócio é produtivo, valioso e gratificante, não há razão objetiva para que não deva considerar vender, na expectativa de que o comprador possa trazer melhor gestão e rendimento ao negócio e permitir que a família se concentre noutras atividades. Por isso, é legítimo celebrar sempre que acionistas familiares vendem um determinado negócio a compradores que o vão fortalecer, especialmente quando a venda liberta a família para empreender noutras atividades mais produtivas, mais gratificantes e que melhor se adaptem aos seus interesses e talentos.

A vida de uma empresa familiar saudável e bem gerida é tipicamente marcada por um crescimento significativo e pela sustentação de margens atrativas. A partir de um determinado momento, a empresa atinge uma posição e uma escala que a tornam atrativa para compra por um terceiro – um fundo de investimento, um concorrente nacional ou um grande operador internacional do setor. E seja por questões do negócio ou das intenções da nova geração da família acionista, tomar a decisão de vender é perfeitamente legítimo. E por  por duas grandes ordens de razões.

  • Em primeiro lugar, todas as empresas têm ciclos de vida. Um negócio que é competitivo num certo estágio da sua indústria pode precisar de escala, tecnologia, competências, um estilo de gestão diferente e um nível superior de capital para competir adequadamente no novo estágio em que a sua indústria está a entrar. Neste contexto, se uma família quer preservar a sua presença no negócio do fundador por várias décadas vai ter de assegurar os fatores de competitividade associados a cada novo estágio da indústria. Por uma série de razões, muitas empresas familiares deixam a certa altura de conseguir adaptar-se a essa novas condições e fecham portas – o que aliás explica a elevada mortalidade das empresas familiares da terceira geração em diante. A maioria das empresas familiares que encerram as suas atividades fazem-no porque se tornam pouco competitivas (devido a má gestão, falta de reinvestimento ou tecnologia disruptiva que destrói ou transforma indústrias) ou porque a família perde o interesse no negócio. Vender bem na altura certa pode ser a melhor forma de evitar esta agonia final.
  • A segunda razão pela qual as famílias podem considerar vender deriva da evolução natural dos interesses dos acionistas, ou das suas próprias competências, ao longo de décadas e gerações. Quando isso acontece, os acionistas começam a afastar-se do negócio de família, tornando-se incapazes de o gerir ou supervisionar a empresa como proprietários ou líderes empresariais ou sem interesse para o fazer. Muitas pessoas ligadas a empresas familiares veem isso como um "pecado" dos acionistas, mas é infelizmente uma evolução natural. O pecado ocorre, sim, quando os membros da família se tornam preguiçosos, improdutivos e completamente dependentes de terceiros em termos financeiros. A família deve gerir o seu desenvolvimento e a sua relação com o negócio da melhor forma possível e, em seguida, aceitar o que é real (em vez de desejado) sobre cada um dos seus membros e o contexto que enfrenta. A pior situação é construir um empreendimento de valor e ver esse valor desvanecer-se por não se enfrentar a realidade sobre os atributos distintivos da empresa e sobre as ameaças que ela enfrenta. E tem de se manter a consciência de que a família pode ser bem-sucedida noutras atividades e,  preservando até a sua própria a unidade, aplicar as suas motivações e competências noutro negócio. Não é uma observação de escape onírico – de facto, muitos estudos têm demonstrado que as famílias que vendem o negócio herdado do fundador começam ou compram outro negócio e mantêm-se como uma família empresária unida e estimulada.

Avaliação objetiva do alinhamento entre os acionistas e o negócio familiar

Face ao que se referiu, é fundamental avaliar periodicamente o alinhamento entre os membros da família acionista e aquilo que a empresa familiar representa em termos de propósito, atributos, valores, objetivos e exigências de gestão. Essa avaliação passa por dar resposta a três simples questões, das quais derivam importantes implicações...

  1. A família é a melhor gestora deste negócio? Se não, encontre outros que tenham as habilidades e os valores para lhe oferecer as melhores condições de gestão. Os membros da família podem continuar a ser proprietários do negócio e provavelmente poderão ter condições para uma contribuição eficaz para a empresa como membros do conselho de administração ou noutras funções importantes.
  2. A família é a melhor proprietária deste negócio? Temos os recursos (capital, alianças) para apoiar o desenvolvimento deste negócio e as competências e atitudes (perseverança, foco na qualidade, abertura ao risco, espírito de sacrifício) necessárias para ter sucesso nesta indústria? Se a família claramente não pode apoiar o negócio na próxima etapa do jogo, ela precisa considerar a parceria com outras pessoas que tenham as habilidades e recursos necessários. Ou deveria sair desta indústria. A família pode ser um bom proprietário, capaz de suportar os requisitos básicos do negócio, mas não o melhor proprietário porque outros poderiam explorá-lo com maior sucesso. Esta é sempre a situação mais difícil de avaliar porque pode ser afetada pelo orgulho ou pela tradição sobre as qualificações da sua família como proprietário, mas a objetividade é essencial.
  3. Este negócio está a produzir retornos adequados para a família? Possuir (e especialmente administrar) um negócio tem custos e benefícios para uma família – financeiros, psicológicos e relacionais. Para permanecer numa empresa, os benefícios de possuir e gerir essa empresa devem ser superiores aos custos durante um período razoável. Além disso, o retorno acionista deve suficientemente alto para estimular a sua permanência na empresa e superior a aplicações alternativas do seu capital – se os recursos e esforços da família fossem aplicados noutra direção, seriam os retornos maiores?

Face à rapidez de mudança dos contextos competitivos em praticamente qualquer indústria, é importante e saudável desenvolver esta avaliação de dois em dois ou de três em três anos, com a contribuição de conselheiros externos próximos, proprietários-chave e do Conselho de Administração. E com uma absoluta garantia de transparência e objetividade.

Empresa familiar
Empresa familiar créditos: DALL-E

E afinal de contas, como avaliar se faz sentido ou não vender ?

Tomar a decisão de vender ou manter uma empresa familiar envolve alinhar os interesses dos principais intervenientes do contexto da empresa: os acionistas (que tomam a decisão), os líderes empresariais, os membros do conselho de administração e finalmente os membros da família. Cada um terá a sua perspetiva, os seus interesses e os seus métodos de raciocínio próprios e é, naturalmente, essencial entender esse posicionamento a nível individual para capturar bem os seus interesses e motivações para vender ou manter o negócio. Para ajudar a sistematizar a questão propomos o que são, na nossa ótica, os principais fatores que estimulam a venda da empresa... e aqueles que favorecem o contrário.

Os cinco fatores que estimulam a venda da empresa familiar

  1. Considerações financeiras
  • Desejo de monetizar o valor de um negócio.
  • Desejo de aproveitar uma oferta com um preço de venda atrativo.
  • Existência de outras oportunidades de negócio interessantes que exigem capital e atenção, tornando a venda do negócio atual atraente.
  1. Desempenho
  • Forte desempenho empresarial que suporta um preço de venda elevado mas que pode não ser sustentável.
  • Risco de fraco desempenho da empresa ou retração patrimonial no futuro.
  • Dividendos fracos ameaçam a liquidez dos acionistas.
  1. Questões de propriedade
  • Afastamento dos acionistas da empresa causados por fatores já referidos.
  • Conflitos familiares causados pelo negócio ou dentro dele próprio.
  • Proprietários que colocam os seus interesses acima do interesse da família.
  • Os acionistas não se sentem respeitados pela gestão executiva.
  1. Questões de liderança
  • Ausência de envolvimento da família no acompanhamento do negócio.
  • Falta de capacidade de afirmação e liderança do líder executivo.
  1. Questões familiares
  • Necessidades de liquidez na família.
  • Falta de interesse no negócio por parte da próxima geração.
  • A empresa não segue os valores familiares ou prejudica a imagem da família.

Os fatores que estimulam a  manutenção da empresa nas mãos da família

  1. Considerações financeiras
  • Forte vantagem competitiva do negócio em relação aos concorrentes.
  • Ofertas potenciais abaixo do justo valor.
  1. Desempenho
  • Forte desempenho financeiro e crescimento sustentado do negócio.
  • Capacidade de distribuir dividendos atraentes.
  • Fé na capacidade de acionistas e gestão fazerem ainda melhor, sustentar o negócio e garantir que seja igualmente bem-sucedido no futuro.
  1. Questões de propriedade
  • A empresa mantém uma comunicação adequada com os acionistas.
  • Os acionistas sentem-se respeitados pela empresa.
  1. Questões de liderança
  • Histórico de liderança familiar do negócio longa e bem-sucedida.
  • Processo de sucessão robusto e com bons resultados.
  • Envolvimento da família em posições executivas.
  1. Questões familiares
  • A liquidez é adequada às necessidades das famílias.
  • Orgulho da família no negócio e na sua reputação, defendendo o nome da família.
  • A empresa coloca em prática os valores e a imagem da família.
  • Forte interesse no negócio por parte da próxima geração.
  • Forte historial de propriedade familiar e sensação de que vender a empresa violaria os princípios familiares e o legado das gerações anteriores.
  • Importância da empresa para o estatuto social da família (ex. filantropia).
  • Receio de que vender o negócio venha a prejudicar a imagem da família.

Naturalmente, a preponderância destes fatores na decisão de manter o negócio nas mãos da família pode ser afetada pela apresentação por terceiro de um preço de venda claramente elevado, o que pode acontecer face às sinergias que esse terceiro possa ter com outras empresas suas.

Adicionalmente, há muitas vezes um apego racional e sentimental por parte das famílias empresárias aos ativos sob sua posse.  Por isso, uma decisão de vender o negócio requer normalmente uma motivação muito mais forte do que para preservar a sua propriedade. Não obstante, a decisão de vender ou manter é facilitada pela colocação dos dois conjuntos de condições acima expostos em balanço relativo com a máxima objetividade e num momento em que a venda seja propícia.

Empresa para venda
Empresa para venda créditos: DALL-E

A decisão de vender está tomada. Como preparar o processo de venda ?

O momento da venda é uma consideração muito importante. Para receber um preço atraente, o momento certo de vender é quando um comprador está pronto para o adquirir, não quando os acionistas estão prontos para o vender. Esta constatação não é nada fácil de compreender para os acionistas, porque eles geralmente estabelecem o timing do processo conforme as suas necessidades e o momento que lhes interessa, mesmo que não seja evidente que haja um comprador ou que a própria empresa não esteja na melhor forma para projetar a sua atratividade e suportar o preço pretendidos.

Adicionalmente, se uma indústria se está a consolidar,  deve procurar-se uma posição mais próxima do front-end de um roll-up do setor do que do tail end.  Isso requer uma compreensão da dinâmica do setor da empresa e uma negociação habilidosa.

Vender uma empresa requer habilidades especiais e é provável que os acionistas de uma empresa familiar não tenham experiência com esse processo. Há que evitar estar sentado do outro lado da mesa de uma equipa muito mais experiente representando o comprador. E só porque um potencial comprador diz o quanto ele admira o que a família construiu e que quer que ela permaneça ligada à empresa, isso não significa que ele tenha os seus melhores interesses no coração. Num processo de venda, o vendedor precisa de um aliado forte experiente e de confiança que o possa guiar.

E em Portugal, poderá haver mais empresas familiares a passar de mãos ?

Temos defendido muitas vezes a criticidade do aumento de escala do tecido empresarial em Portugal e sabemos que as operações de fusão e aquisição são decisivas para o efeito. Em Portugal mais do que noutros países, empresas familiares de pequena e média dimensão têm um forte apego ao seu legado e os acionistas estão tipicamente muito envolvidos no negócio o que resulta numa relutância grande em considerar uma venda ou uma fusão. Mesmo as empresas familiares abertas a vender ou comprar, que são na nossa experiência raras, não atacam a sua intenção com a determinação e o suporte profissional que seriam necessários para a levar a bom porto.

Para quem tem algum conhecimento do universo das empresas familiares em Portugal, uma leitura atenta dos dois conjuntos de condições – motivadores de venda e motivadores de preservação do capital – demonstra inequivocamente que o estado de alma dos acionistas destas empresas dá muito maior importância ao primeiro do que ao segundo.

Por essa razão, e apesar do que aqui foi escrito, não considero expectável que venha a haver uma alteração substantiva neste padrão, mesmo com as crescentes dificuldades de sucessão que se conhecem em Portugal como em todo o mundo. O tão desejado aumento de escala, a existir, far-se-ia mais pela queda de pequenas empresas e pelo crescimento orgânico das grandes. Apesar de tudo, esperamos que esta reflexão sobre o porquê, o quando e o como lançar uma operação de venda ou de fusão seja útil e estimule alguns corpos acionistas mais afoitos a considerar e avançar com uma operação inorgânica.

Empresário, Gestor e Consultor                                                           

Veja também