O ano era 1996, Portugal estava à beira de se juntar à moeda única, e António Guterres sucedia às maiorias absolutas de Cavaco Silva, sem gozar dessa autonomia para aprovar orçamentos. Durante quatro anos, governou com as contas aprovadas à custa da negociação, primeiro com o CDS e o PSD dos Açores e da Madeira, depois com a ajuda do PSD, em nome do "interesse nacional".

Com novo governo sem maioria em 2000, o mesmo líder socialista conseguia mais um Orçamento do Estado (OE) aprovado graças à abstenção do CDS, após ceder às exigências de Paulo Portas de subir as pensões rurais e melhorar o IRS para famílias com idosos a cargo. O orçamento seguinte ficaria conhecido como o Orçamento Limiano, após um único deputado centrista, Daniel Campelo, dar a Guterres o voto decisivo, que repetiu no ano seguinte, em troca da manutenção da fábrica de queijo e de obras fundamentais para o seu distrito, Viana do Castelo.

Com o fim da maioria absoluta em 2009, José Sócrates ainda viu dois orçamentos aprovados em minoria, graças ao PSD. Tudo junto, foram nove orçamentos do Estado, todos os que saíram de governos minoritários socialistas, executados graças aos partidos de direita.

O que é diferente agora? Em primeiro lugar, as posições estão invertidas e desta vez é o PS que está na oposição, com a possibilidade de, em nome do interesse nacional, aprovar o OE do governo minoritário da AD ou impedi-lo e ver cumprir-se a promessa de Marcelo de voltar a convocar eleições, uma ameaça que nunca esteve em causa nas anteriores viabilizações. Em segundo lugar, as franjas que outrora serviram para definir caminhos esfumaram-se e o que existe hoje é uma terceira via que, sem ser de poder, tem peso suficiente para nunca servir um dos lados e poder impedir a ação do outro, tornando o país ingovernável. Por último — e talvez mais importante — em lugar de negociar bandeiras relevantes mas laterais, Pedro Nuno Santos quer dinamitar a própria base estratégica do documento, mesmo depois de o chefe do Executivo ter percorrido largas milhas para se aproximar dele, nomeadamente apresentando-lhe um IRS Jovem decalcado do programa do PS.

E digo Pedro Nuno Santos porque tenho a forte convicção de que se o líder socialista eleito tivesse sido José Luís Carneiro estaríamos a viver tempos bem mais civilizados, com a negociação dominada pelo sentido de Estado e sem que a sobrevivência política individual e o interesse partidário se sobrepusessem ao que é melhor para o país.

O governo fez dos impostos, nomeadamente a redução progressiva do IRC, o ponto de partida fundamental para o seu Orçamento e para a linha programática da governação e é exatamente isso que o líder socialista se recusa a deixar passar. Forçar um entendimento com o PS, perante a intransigência dos socialistas em suportar aquilo que serve de espinha dorsal à estratégia do governo, seria dar seguimento a uma amálgama desprovida de rumo e de sentido. E de que vale aprovar um Orçamento em que o governo não acredita? Seria governar com uma mão de Pedro Nuno Santos metida na caixa do dinheiro e a outra a manobrar o carimbo das medidas aprovadas.

E assim chegámos ao momento em que o Chega se perfila como a saída de emergência, num momento em que provocar eleições teria consequências dramáticas para o PS — que seria cilindrado não apenas em legislativas como nas autárquicas do ano que vem — e para o Chega, que certamente veria reduzida a sua presença na Assembleia, depois de não ter ajudado a suportar uma solução de direita quando ela se fez maioria parlamentar.

Quanto aos flic-flacs a que o comentariado nacional se agarra agora, o "irrevogável" de Ventura tornou-se em "tudo fazer para evitar uma crise política" com a mesma naturalidade que o OE "praticamente impossível de aprovar" de Pedro Nuno se tornou na vontade do PS de "contribuir para a viabilização do OE". Há tanto de sentido de Estado como de instinto de sobrevivência em ambos. E o "não é não" de Montenegro não se tornará "sim" se a AD vir o seu orçamento aprovado à direita.

Perante este cenário, não será estranho que cheguemos a novembro com um OE da AD avalizado por PS e Chega. Não seria, afinal, a primeira vez em que estariam de mão dada na viabilização de medidas.

Diretora editorial