"Há profissões heroicas, cuja condição é a grandeza de alma,
e que não admitem meio-termo entre a infâmia e a glória.
Entre elas está a de soldado."
Moniz Barreto    

Face aos graves e indecorosos eventos relacionados com a insubordinação de 13 militares da Armada, num processo que se arrasta há demasiado tempo, tempo inadmissível no âmbito militar, convém relembrar a última revisão do Regulamento de Disciplina Militar (já nem falo da desgraça que foi a reforma da Justiça Militar e o fim dos tribunais militares em tempo de paz), para se perceber como chegámos a este estádio de retrocesso (civilizacional) da sociedade. Tenho para mim que o Regulamento de Disciplina Militar (RDM) foi um dos melhores diplomas de toda a história da legislação portuguesa.

O RDM incorporava uma sabedoria e um refinamento de muitos séculos, era equilibrado, eficaz e contemplava todas as situações possíveis. As primeiras leis militares portuguesas perdem-se nas brumas dos tempos, mas não andaremos longe da verdade se dissermos que foi o muito culto Rei D. Duarte que primeiro elaborou, com alguma sistematização sobre a matéria.

Muitos outros se lhe seguiram, sendo de salientar as Ordenações Afonsinas (de D. Afonso V); os notáveis regulamentos promulgados por D. Sebastião; a vasta legislação concebida durante a Guerra da Restauração (ou da “Aclamação”); os excelentes regulamentos legados pelo Conde de Shaumburg Lippe (incluindo para a Armada), em 1763; as reformas levadas a cabo por Carr Beresford, ao tempo das invasões franceses e a extensa legislação produzida ao longo do século XIX são, também, relevantes donde se destaca o primeiro Código de Justiça Militar, de 1875, e o Regulamento de Disciplina, para o Exército.

Com a I República toda a legislação militar se moderniza, tentando-se colmatar as omissões e erros que o fim da Monarquia Constitucional tinha deixado acumular. E é já no fim dessa mesma República que se harmonizam os regulamentos de disciplina do Exército e da Armada, de modo a criar-se um único documento que servisse ambas as Corporações. E, assim, nasceu o RDM, em 1 de dezembro de 1925.

Este documento, porém, tinha os seus antecedentes próximos, no Regulamento de Disciplina do Exército, promulgado a 19 de janeiro de 1911; este, por seu lado, foi revisto por expressa autorização datada de 20/7/1912, cujos trabalhos terminaram com a publicação do texto remodelado, em 2/05/1913 (o último regulamento disciplinar da Armada do tempo da Monarquia, era de 20/06/1907, que foi substituído por outro também de 1913, Dec. nº 80 de 25/8). Desde então sofreu uma nova revisão, em 1929 e dez adaptações entre essa data e 1965 (sendo a 1ª de 1943).

Em 1977, sobretudo tendo em conta a mudança constitucional havida em 1976, foi feita uma nova revisão, promulgada a 9 de abril desse ano (Dec. Lei. 142/77). Todas estas revisões, contudo, não alteraram a substância do documento nem, tão pouco, as linhas mestras nele vertidas, que muitas décadas de aplicação, tanto em tempo de paz como de guerra, na Metrópole e no Ultramar, tinham consolidado. O RDM parecia um documento à prova de bala.

Eis senão quando, três décadas e algumas revisões constitucionais depois e, ainda, após o fim da Justiça Militar, como tal, e o encerramento dos tribunais militares – uma medida profundamente errada e escusada, que há de terminar sem lustre nem glória – se quis novamente mexer no RDM, o que ocorreu através da Lei Orgânica 2/2009, de 22 de julho, tendo, agora sim, introduzido alterações profundas que já estão a afetar negativamente a disciplina.

Também neste caso houve pouca participação da IM e muita influência de civis que têm da realidade militar apenas uma ténue ideia (quando não têm má intenção). A hierarquia militar tornou em não se opor a nada em termos que ultrapassassem uns memorandos de alerta.

Não vamos analisar todo o documento e os problemas que transporta – isso daria um trabalho de outra dimensão – mas vamos ilustrar o ponto analisando apenas um “item”, justamente o introito ao célebre artigo 4º - conhecido “por aquele que dava para punir”, e aos seus “deveres especiais” (especial, por característico, exclusivo, destinado a um fim particular). Nesta última versão este artigo aparece com o n.º 11.

A versão de 1911, que subsistiu até à versão de 1977 (e, portanto, até 2009), com poucas nuances, rezava assim: “O militar deve regular o seu procedimento pelos ditames da Honra, amar a Pátria, guardar e fazer guardar a Constituição Política e mais leis da República, e tem por deveres especiais os seguintes” (seguiam-se 37 deveres). A fórmula de 1913 fazia anteceder a palavra “Honra”, das palavras “virtude e da”, e acrescentava a seguir a “República” a frase “de que tomará compromisso solene segundo a fórmula adotada” (seguiam-se 49 deveres).

Em 1925 mantém-se tudo igual e acrescenta-se um dever (50); idem para a alteração de 1929 (51). E assim se chega a 1977 em que, relativamente ao texto em análise, se acrescenta uma frase a seguir a “Pátria”, “e defendê-la com todas as suas forças até ao sacrifício da própria vida” (aumentaram-se os deveres para 55).

Pode, pois, verificar-se que ao longo de cem anos se burilou o texto no sentido de o tornar mais coerente, expressivo e abrangente e, até, mais exigente. Ora com a última revisão do RDM consumada em 2009, verifica-se que foram introduzidas algumas alterações de substância (e não só no pequeno texto que estamos a analisar). A redação ficou assim:

“O militar deve, em todas as circunstâncias, pautar o seu procedimento pelos princípios da Ética e da Honra, conformando os seus atos pela obrigação de guardar e fazer guardar a Constituição e a lei, pela sujeição à condição militar e pela obrigação de assegurar a dignidade e o prestígio das Forças Armadas aceitando, se necessário, com sacrifício da vida, os riscos decorrentes das suas missões de serviço” (os deveres passaram a estar agrupados de outro modo). Vejamos.

O texto começa por acrescentar “em todas as circunstâncias”, a seguir a “o militar deve”. Tal acrescento não aparenta justificar-se já que representa um pleonasmo e uma redundância – a observância da Ética e da Honra não admite soluções de continuidade…

De seguida verificamos que o termo “virtude” foi substituído pelo vocábulo “Ética”. Esta mudança também nos parece infeliz, atentemos: Ética “é a divisão da Filosofia que procura determinar a finalidade da vida humana e os meios de a alcançar; a ciência que tem por objetivo o juízo de apreciação com vista à distinção entre o Bem e o Mal e pode ainda ser considerada como a ciência da Moral, ou relativa aos costumes”.[1] E por “Virtude” podemos entender a disposição habitual para a prática do Bem, a excelência moral, a autenticidade no viver, o conjunto de todas as boas qualidades morais.

Deste modo podemos intuir que, enquanto a Ética nos coloca mais no campo teórico e académico, a Virtude empurra-nos para o campo da prática e do concreto. Ou seja, é um conceito muito mais objetivado. Por outro lado a virtude, no âmbito militar, não nos obriga apenas a um viver segundo as boas práticas da Moral e da Ética, ela aponta para o conjunto das “Virtudes Militares”, enformadoras do verdadeiro Espírito Militar e esteio fundamental da vivência espiritual da Instituição Militar (lembremos a importância das Virtudes Teologais e as Virtudes Cardeais).[2]

A nova fórmula também refere a “sujeição à condição militar”, o que parece deslocado neste âmbito. O RDM trata especificamente (mas não só), das falhas naquilo que a condição militar obriga, constrange e exige, e tais decorrências encontram-se plasmadas em documento próprio.

Diz o texto, outrossim, “pela obrigação (dos militares) de assegurar a dignidade e o prestígio das Forças Armadas”, ora esta frase parece ser um novo pleonasmo já que está incluída no âmbito da “Ética e da Honra”, além do que alguns dos deveres enunciados implicam tal comportamento. E prossegue “aceitando, se necessário, com sacrifício da própria vida”, ora aqui o caso é mais grave. Sacrificar a vida deixa de ser uma imposição ou um imperativo, já que fica ao livre arbítrio do próprio se o irá fazer ou não. Esta afirmação decorre dos termos “aceitando” e “se necessário”; ou seja está aberto o caminho ao relativismo e à apreciação subjetiva…

As omissões são, sem embargo, tão ou mais importantes do que as alterações de termos. Aquela que aparece como mais importante é que o militar já não tem o dever de “Amar a Pátria” nem “defendê-la com todas as suas forças…” A Pátria foi substituída pelos “riscos decorrentes das suas missões de serviço”. Deve ser por isso que o sacrifício da vida passou a ser relativo…

Divisa-se, ainda, uma contradição grave quando se fala em missões de serviço e se as liga à Ética e à Honra, pode querer significar que estas não se aplicam àquelas. Ora tal não é aceitável dado que a Ética (melhor a virtude) e a Honra se aplicam a toda a vivência do militar — que deve ser um todo não sincopado.

Também se pode extravasar o atrás dito para a Constituição Política. Esta, quando é legítima, deve ser cumprida e defendida (o que devem fazer os militares quando a mesma for violada pelos órgãos de soberania?), por parte de todos os militares. É uma decorrência lógica adotada em todos os países e sistemas políticos do mundo. Ora a Constituição não é superior à Pátria e, por isso, não faz sentido defender aquela e não morrer por esta.

A Constituição é um “papel” em que está consignado um ordenamento jurídico. A Pátria, para além de ser a terra onde nascemos e a dos nossos pais, é uma entidade imaterial que representa e expressa um laço moral e uma identidade própria e única.

Por tudo isto consideramos as alterações feitas neste preâmbulo ao atual artigo 11 do RDM, como infelizes, descabidas e perigosas; redutoras, eivadas de relativismo moral e escritas em português menos digno de Camões, Bernardes ou Vieira. Insta-se a sua alteração imediata e aconselha-se algum cuidado na escolha de quem estuda e delibera sobre estas questões. Às chefias militares sugere-se que não se deixem assoberbar pela papelada, e coisas para fazer “para ontem”, que lhes retirem o tempo e a serenidade para uma reflexão adequada para aquilo que é verdadeiramente importante.

E este assunto cabe, seguramente, nesta categoria.

Oficial Piloto Aviador (Ref.)

[1] Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª Edição, 1999.

[2] Destacam-se a Probidade e Discrição, a Obediência e Disciplina, a Subordinação e Respeito, a Lealdade e Patriotismo, a Fraternidade, Dedicação e Confiança nos Chefes, a Solidariedade, Camaradagem e Espírito de Corpo, a Coragem, Bravura e Intrepidez, a Abnegação, Constância e Resignação, a Generosidade na Vitória e a Paciência na Adversidade, a Honra e o Valor. Retirado do clássico “As Virtudes Militares na Tradição Histórica de Portugal”, do General Ferreira Martins.