Desde há alguns meses que os moradores da cidade de Lisboa foram surpreendidos com a aparição de mensagens de propaganda política utilizando os "monólitos" da J.C. Decaux e a rede de abrigos de transportes públicos da multinacional francesa. A mensagem era muito "popular" (populista) como "pior não fica" (uma alusão à campanha do deputado/palhaço brasileiro Tiririca), referências ao IRS devolvido, à quantidade de chaves entregues, etc.

Em primeiro lugar, estes meios devem ser usados para divulgação de serviços e para divulgar informações autárquicas não para serem abusados por mensagens tão claramente pré-eleitorais (as eleições estão à distância de menos de um ano). Não é nítido se toda esta propaganda eleitoral em meios comerciais é paga (uma vez que o contrato JC Decaux/CML prevê a cedência gratuita de mupis), mas é absolutamente claro que em Portugal é proibido (ver site da CNE) pagar propaganda política em meios privados: "Qualquer pessoa, singular ou coletiva, que promova ou encomende essa propaganda, bem como qualquer empresa que a fizer (...)". É assim, muito provável que tenha havido vários pagamentos da CML pelo acesso a estes meios publicitários. Isso mesmo se pode concluir da existência de vários contratos públicos deste tipo no Portal Base da Contratação Pública:

"Aquisição de serviços de publicidade em rede própria, de suportes publicitários, colocados em posições estratégicas da Cidade de Lisboa e produção de materiais para campanha de comunicação: Unicorn Fa... Ajuste Direto Regime Geral, Município de Lisboa J.C.DECAUX (PORTUGAL)-MOBILIARIO URBANO E PUBLICIDADE LDA 21.810,00 €, 14-11-2022" e "Aquisição de serviços de compra de espaço publicitário para a divulgação da campanha de comunicação “Projeto Integrado de Requalificação do Espaço Público do Eixo da Almirante Reis | Processo 16255/CM... Ajuste Direto Regime Geral, Município de Lisboa, J. C. DECAUX (PORTUGAL) – MOBILIÁRIO URBANO E PUBLICIDADE, LDA. 9.460,00 €, 02-12-2024" (entre outros).

Estas campanhas "pior não fica", "chaves entregues", "entrega do IRS" e "capital da inovação", contudo, embora sejam anteriores à da requalificação da Almirante Reis, não tinham ainda qualquer entrada no portal sendo que, em Portugal as entidades públicas têm 30 dias úteis após a celebração de um contrato para publicá-lo no Portal BASE da Contratação Pública, conforme estipulado no artigo 127.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos (CCP). Como estas linhas estão a ser escritas a 29 de dezembro terão estes contratos de propaganda política sido assinados antes de 1 de dezembro? Se sim, porque já está publicado o da Almirante Reis (datado de 2 do mesmo mês)?

Portugal é um país de leis. A Lei Eleitoral para a Assembleia da República no seu Artigo 57.º determina que "os órgãos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, das demais pessoas coletivas de direito público, das sociedades de capitais públicos ou de economia mista e das sociedades concessionárias de serviços públicos, de bens do domínio público ou de obras públicas, bem como, nessa qualidade, os respetivos titulares, não podem intervir direta ou indiretamente em campanha eleitoral nem praticar quaisquer atos que favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem de outra ou outras, devendo assegurar a igualdade de tratamento e a imparcialidade em qualquer intervenção nos procedimentos eleitorais."

A lei é muito clara quanto à ilegalidade deste tipo de propaganda durante os períodos eleitorais. Não há, infelizmente, a mesma clareza fora dos mesmos. A CNE escreve que "a proibição estabelecida pelo n.º 4 do referido artigo 10.º, conjugada com a sujeição aos especiais deveres de neutralidade e imparcialidade, visa impedir que as entidades públicas, através dos meios que estão ao seu dispor, os utilizem a favor de determinada candidatura em detrimento das demais". Isto mesmo resulta da alínea b), do n.º 3, do artigo 113.º da Constituição da República Portuguesa onde se lê que deve ser respeitado (entre outros) o princípio da "igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas" e - central nesta questão da "imparcialidade das entidades públicas perante as candidaturas". Há também acórdãos do TC (como o n.º 586/2017) que determinam que estes normativos prosseguem um desiderato de garantia de igualdade entre os vários concorrentes que se sujeitam ao ato eleitoral" nomeadamente na "separação clara entre o património das entidades públicas e os recursos utilizados pelos concorrentes às eleições." Parece claro que a intenção do Legislador não se limita apenas ao restrito período de campanha eleitoral.

Quanto a sabermos se esta legislação cobre os meios da J.C. Decaux que atualmente a CML está a utilizar, a CNE (questionada diretamente sobre esta questão) clarifica: "Relativamente aos meios de difusão, devem considerar-se incluídos todos os serviços ou meios que, habitualmente, são adquiridos para publicidade, mesmo que já façam parte do património da entidade pública" tendo aclarado, mais tarde, que "a afixação de um elevado número de cartazes em suportes publicitários (mupis) da campanha de propaganda intitulada “Como está não fica” da Câmara Municipal de Lisboa,  prende-se com os deveres de neutralidade e imparcialidade a que as entidades públicas estão sujeitas. Tais deveres decorrem, por um lado, da estrita prossecução do interesse público por parte da Administração Pública, conforme o artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa, e, por outro lado, do princípio da igualdade, devida a todas as forças políticas, em cumprimento do artigo 13.º e 113.º, n.º 3, alíneas b) e c), da mesma Lei Fundamental. No momento não está em curso qualquer processo eleitoral ou referendário que exija a intervenção desta Comissão na matéria em causa."

Ou seja, para a CNE, fora do período de apenas 14 dias de campanha eleitoral, é a Lei da Selva que vale. Na minha opinião esta interpretação da letra da lei feita pela CNE contradiz o espírito da lei sobretudo dada a desproporção de meios (pela quantidade de centenas mupis convencionais e digitais usados nestas campanhas da CML e pela duração de meses em que está na rua) e pelo recurso a meios publicitários financiados por dinheiros públicos dado que, nestes casos, tudo indica que nem sequer foram usados os 40 mupis móveis para "publicidade institucional" previstos pelo contrato de concessão. É assim urgente clarificar a lei que regula a propaganda política fora dos períodos eleitorais, sobretudo se financiada com dinheiros públicos e enquanto isso não acontecer há que respeitar os mínimos de decência e lealdade democráticos.

Rui Martins é fundador do Movimento Pela Democratização dos Partidos