De entre os temas polarizadores da sociedade está a questão racial. Em Portugal temo-nos dedicado a discutir se há ou não há racismo, o que é o racismo, se Portugal é ou não um país racista, se temos ou não racismo estrutural.
De um modo sumário e inteligível: (i) racismo existe em qualquer sociedade em que ocorra uma diferenciação entre sujeitos em função da sua raça, gerando uma hierarquia de valor e de acesso a bens; (ii) trata-se de um processo social através do qual tal diferenciação opera, com prejuízo para uns em benefício de um grupo historicamente dominante; (iii) Portugal é um país onde o racismo tem uma origem histórica ligada ao colonialismo tardio, com características próprias que não devem ser colocadas numa comparação simplista face aos Estados Unidos ou ao Brasil.
Estas questões acabam por se desenrolar num debate, primeiro teórico, posteriormente prático, sobre a noção de racismo estrutural, que aqui é impossível ter e que corre o risco de, uma vez mais, comparar realidades incomparáveis. Basta então dizer que por racismo estrutural podemos falar de duas coisas distintas, ou (a) de uma realidade em que o racismo como produto da escravatura e do colonialismo não foi totalmente expurgado das nossas sociedades, ainda implicando desvantagens, estereótipos e preconceitos que prejudicam a vida de pessoas ditas ‘racializadas’, ou (b) de uma realidade de tal forma determinada, em que o racismo é o cimento que une toda a sociedade e a organização do Estado, do qual ninguém escapa, mesmo que o queira. Pessoalmente inclino-me para a primeira, mas a Academia tende a inclinar-se para a segunda, por razões que não há espaço, nesta crónica, para referir.
Para entendermos, então, os acontecimentos que tiveram o bairro do Zambujal como epicentro, precisamos compreender que há um histórico de más decisões políticas em torno da inclusão de pessoas racializadas na sociedade portuguesa, como detalha a obra coletiva O Estado do Racismo em Portugal (2021). Com efeito, a opção, até certo ponto compreensível, de solucionar a integração urbana de grupos oriundos das antigas colónias portuguesas em bairros sociais, gerou processos de guetização em linha com outros países, que estão na base de exclusão social e reprodução geracional de pobreza, já que encontramos famílias com baixos recursos, desestruturadas ou com acumulação laboral que impede um acompanhamento das crianças e jovens, que ficam permeáveis a redes constituídas de criminalidade, a que se juntam escolas deixadas ao abandono de políticas educativas específicas, onde o cansaço dos professores abre o flanco para o desinteresse educativo e o insucesso escolar, criando um chamado ‘caldo social’ para a constituição de territórios suburbanos que passam a figurar como socialmente excluídos, verdadeiras ilhas sociais, e que acabam por ser objeto de intervenção estatal apenas através do policiamento. Para que possamos efetivamente alcançar um equilíbrio entre segurança e justiça, é imperativo investir na formação e nas condições de trabalho dos agentes de segurança pública, garantindo assim forças qualificadas que possam atuar não apenas com eficácia, mas com respeito aos direitos fundamentais, num quadro democrático que valorize a confiança pública.
Ora, o policiamento de territórios tornados ilhas sociais torna-se difícil, com uma lógica instituída de desconfiança mútua, em que operam o “nós” e o “eles”, já que a única mão do Estado que muitos destes territórios conhecem são as esquadras da polícia, por onde, de um modo ou de outro, acabam por passar, reforçando estereótipos e ressentimentos. Ao mesmo tempo, a violência policial sobre pessoas racializadas em Portugal está devidamente identificada em relatórios internacionais de direitos humanos, a que acrescem os dados de presença de grupos de extrema-direita entre as forças de segurança, o que constitui um problema sério.
A guerra cultural sobre Estado-Policial
O apuramento de todos os factos e a extração das consequências legais sobre a morte de Odair Moniz, espera-se, seguirão os trâmites judiciais. Aqui importa, como tem sido visto, uma outra discussão. Recapitulando: Portugal tem um problema de racismo endémico que afeta as oportunidades das populações racializadas, que regra-geral enfrentam a acumulação de problemas económicos e insucesso escolar, fatores que podem partilhar com grupos sociais “brancos”, mas que têm a desvantagem acrescida da ‘raça’.
Ora, uma vez que a revolta popular se traduziu em vandalismo, ela perde a capacidade de empatia generalizada, já que afeta direitos fundamentais e primários do Estado de Direito, como o direito à segurança e o direito à propriedade privada. Assim, é do caos que emerge a guerra cultural sobre o Estado-policial, ou Estado securitário, se preferirem. A intervenção de André Ventura, do líder parlamentar e do assessor político, em defesa apriorística das forças de segurança, da “limpeza das ruas” dos “bandidos”, aproxima-se de uma ideia veiculada por Bolsonaro e os setores sociais que o suportam, de que “bandido bom é bandido morto”.
Ao marcar uma manifestação em defesa da polícia – como se a questão fosse um ataque à polícia de uma forma coletiva –, o Chega está a associar-se, abertamente, à defesa de um Estado de vigilância policial, cujo primado não é a ordem jurídica (rule of law), mas uma interpretação restritiva e ideológica de “lei e ordem”, que é um primeiro passo para um Estado que vigia os cidadãos, sem respeito pelos limites constitucionais. O apoio massivo às forças de segurança é uma estratégia política relevante do partido de André Ventura, permitindo alavancar a ordem contra o caos, razão pela qual tem sido evidente o apoio popular nas redes sociais à causa. Já dizia Alexis de Tocqueville, que em tempos de caos as pessoas abdicam da liberdade em favor da ordem.
Por outro lado, e para que a guerra cultural se alimente é preciso dois polos, setores mais radicais da Esquerda, ligados ao BE, têm aproveitado os acontecimentos para incentivar a uma revolução racial. Ainda que a intenção seja a da correção das injustiças raciais, a verdade é que o incentivo cai numa plataforma de ódio próxima ao da direita radical, ambas colocando em causa, potencialmente, a convivência social e o ‘chão comum’ para as próximas gerações. Uma mudança nas dinâmicas raciais da sociedade não pode ser feita através de uma revolução, que não trará uma manhã límpida, mas uma divisão racial ainda mais evidente e profunda, que poderá ter colocado em causa a democracia.
Portanto, ainda é na democracia, nos princípios liberais-sociais que custaram a ser edificados, que temos de fazer cumprir o ideal republicano da igualdade efetiva. Não a igualdade dos polos, a igualdade debaixo de telhados do autoritarismo, mas a igualdade que formou as promessas constitucionais sob o estandarte dos Direitos Humanos. E para isso, é preciso que se faça justiça no caso de Odair e outros Odaires, com políticas públicas que objetivamente demoram mais do que ímpetos revolucionários, e que o Estado de Direito, com a paz social e a norma constitucional, seja reposta, para que, por fim, nos sentemos à mesa para discutir o que varremos para debaixo do tapete.
Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (CEI-IUL)