O problema de escrever nesta altura do ano é que é muito difícil fugir à passadeira criativa que é abordar o Natal, fazendo notar alguns comportamentos clássicos que todos sabemos serem engraçados ou irritantes.
E de facto há uma taxa grande de aceitação deste tipo de temáticas porque as pessoas têm facilidade em relacionar-se com temas como o teatro do fingimento da abertura de prendas, ou o fio de racismo com que o nosso tio do Chega rega o bacalhau.
Fala-se menos da WebSummit dos primos. Um evento de networking entre os mais novos da família, que culmina sempre com a entrega dos prémios “Melhor Neto”, “O que está melhor na vida” e “O que foi mais longe sem uma licenciatura”.
O prémio de Melhor Neto sempre foi o que estive mais perto de ganhar. Não por ser um bom neto ao longo do ano, longe disso, mas porque aperfeiçoei a arte da receção do envelope, um desporto olímpico que exige uma coreografia sincronizada, que a minha avó meticulosamente avalia, enquanto única jurada no painel.
Este sempre foi um momento crítico nas consoadas, porque a minha avó nunca anunciava a entrega da casa da moeda aos netos. Por outro lado, surpreendia-(n)os ao longo da noite, em momentos aleatórios e dispersos, um a um, às vezes chamando-(n)os à parte, outras vezes interrompendo uma conversa, e uma vez em específico por baixo da porta do WC, que eu tive uma prima que veio um ano especialmente dos Açores e passou a noite toda na casa de banho porque não estava habituada a estar incontinente.
Isto significava que tínhamos de ter a coreografia ensaiada e pronta a submeter a júri a qualquer momento, e esta era a minha arte.
Durante anos, aperfeiçoei a minha rotina da dança do envelope, dominando a técnica de abrir o envelope, remover o postal onde vinha a mensagem manuscrita, tratá-la como se fosse a parte principal da prenda, e proceder a ignorar completamente o dinheiro que lá constava, ainda que representasse 90% do meu património orçamentado para o ano seguinte.
Outros primos não eram tão refinados, e o júri fazia nota disso mesmo na mesa de jantar. Como a minha prima Rosário, que em 2012 “foi logo ao dinheiro, parecia uma desalmada”.
Ou o meu primo Bernardo, que no ano passado ignorou o chamamento da minha avó para “a ir ajudar num nível de Candy Crush” e deixou a senhora 15 minutos à espera de envelope na mão. Como se a minha avó alguma vez na vida precisasse de ajuda no Candy Crush… que amador.
Em contrapartida, o Bernardo mora no Canadá, por isso ganha há catorze anos consecutivos o prémio de quem está Melhor na Vida, por ser o único que aufere mais de 1000€ e que sabe falar inglês.
Mas nunca haverá um ano como o de 2007. Em que a minha prima Mónica levou os três prémios.
Com uma brilhante coreografia na receção do envelope, ganhou o prémio de Melhor Neto, conseguindo abrir o envelope, tirar o postal e lê-lo em voz alta emocionada, tudo com uma mão, enquanto equilibrava na outra um prato com um limão que mais tarde seria introduzido no ânus do peru, tempero pouco ortodoxo de que a minha avó não abdicava. Essa também nunca entendi. Tudo bem que se põe lá o limão lá para dentro para dar mais sabor, mas a mim estragava-me o limão, que ficava sempre a saber a peru.
Também ganhou o prémio de Melhor na Vida, porque naquele ano tinha um namorado bastante mais velho que lhe dava uma mesada superior ao salário de três meses do Bernardo.
E tudo isto, sem qualquer licenciatura, o que lhe valeu o terceiro prémio, até porque na altura ela ainda andava no sétimo ano. O namorado veio a ter problemas com a polícia mais tarde.
Estou pouco confiante para este ano. Este é um ano de transformação, porque é o primeiro Natal desde que a minha avó criou MbWay. A dinâmica da receção do envelope está adulterada para todo o sempre.
Agora que penso, devia-lhe ter ligado uma ou duas vezes durante o ano, para ver se tinha alguma hipótese de ganhar o Melhor Neto.
Melhor na Vida vai ser complicado, que o Bernardo começou a investir em Bitcoin e a usar pullovers com decote em V, dois dos maiores sintomas de a que a vida está a correr bem a um homem.
O outro já nem posso competir, que em 2021 autossabotei-me com a conclusão de uma licenciatura que até agora tudo o que me deu foi a ligeira confiança de que autossabotar se escreve com dois s.
Acho que, infelizmente, este vai ser mais um ano sem qualquer troféu. Pareço o Sporting.
Pode ser que pelo menos este seja o ano em que a minha avó me deixa por o limão no peru.