A peça de Teatro Auto da Barca do Inferno
Lembra-se do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente? Todos nós estudámos a obra e alguns até tiveram o privilégio de assistir à peça de teatro. A fim de nos recordarmos, vejamos a primeira cena, a cena do Fidalgo.
O Fidalgo aparece junto da barca do Inferno acompanhado de um pajem (o seu criado). As vestes longas e luxuosas do Fidalgo, junto com os acessórios que o adornam, denunciam a sua posição social. Por sua vez, o pajem transporta uma cadeira de costas altas numa mão, segurando o manto do Fidalgo na outra, enquanto caminham.
Começam então as falas:
Diabo:
– À barca, à barca, venham lá! Que temos gentil maré! (...)
Fidalgo:
– Esta barca para onde vai, que assim está apercebida?
Como vemos o Auto da Barca do Inferno
Consegue visualizar a cena? Claro que consegue. O pajem simboliza a tirania e o desprezo pelos mais necessitados; a cadeira simboliza os bens materiais, o poder, o seu estatuto social, a vaidade e a arrogância; e o manto simboliza a sua riqueza, vaidade e orgulho. Estes três são símbolos que Gil Vicente utiliza para criticar a sociedade da época, especialmente as classes altas, que, embora se orgulhassem de sua posição social, não escapam da condenação moral e espiritual.
Imagine agora que está a assistir à peça de olhos vendados... Apenas consegue ouvir as falas. Inegavelmente, sem ter a mínima ideia de quem eram as personagens que estavam a falar, esta primeira cena nada lhe diria.
Como ouvimos o Auto da Barca do Inferno
Agora, imagine que a sua visão lhe permite absorver toda esta cena. Porém, colocou uns auriculares de proteção sonora que o impedem de ouvir uma única palavra. Aprecia todo o espetáculo, mas sem ouvir uma única fala...
Percebe que um homem de alta posição na sociedade se faz acompanhar de um seu criado e tenta imaginar os diálogos com o dono da barca. Esta personagem, o Diabo, é facilmente identificável pela caracterização que apresenta. Mas só lhe resta tentar inventar o que cada um diz. Vai perder toda a mensagem que Gil Vicente pretende passar com esta peça.
Audiodescrição e linguagem gestual
Como já percebeu, estas são algumas das dificuldades que muitos bracarenses enfrentam no seu dia-a-dia. Não só em peças de teatro, mas nas mais variadas situações, como:
- o atendimento em espaços públicos
- atravessar uma passadeira
- caminhar num passeio
- apanhar um autocarro
As pessoas que não conseguem ver ou que têm dificuldades de visão não podem ser esquecidas. As pessoas que não conseguem ouvir ou que ouvem muito mal também não podem ser esquecidas.
Com audiodescrição e linguagem gestual ou legendagem, é possível incluí-las nos eventos culturais da nossa cidade. Com um simples QR Code é possível obter uma descrição detalhada de uma obra de arte, de uma peça de teatro, do autocarro que acabou de parar na paragem. Um sinal sonoro pode avisar se chegamos a uma paragem de autocarro ou se chegamos a uma passadeira e se temos ou não o sinal aberto para passar (algo que já acontece em várias, mas com sons confusos nas mais recentes). Eliminar pilaretes em algumas zonas pedestres, que causam acidentes a quem não os vê, também é urgente.
Mas muito mais importante, com estas e outras soluções, é possível proporcionar autonomia na vida diária de pessoas que atualmente não a têm.
O papel das associações e da Câmara Municipal de Braga
A ACAPO, a Associação de Surdos de Braga e a APD-Braga BCR são algumas instituições que se dedicam a resolver os problemas das pessoas que apresentam dificuldades de visão, audição e locomoção. Infelizmente, a Câmara Municipal de Braga esquece-se frequentemente de as incluir como parceiros quando tenta encontrar soluções para mitigar as necessidades das pessoas que apresentam menos capacidades.
Pior do que isso, a Câmara Municipal de Braga raramente ausculta estas e outras associações para fazer um levantamento das necessidades que a ajude a perceber onde deve atuar.
Concluindo
Em primeiro lugar, é necessário ouvir as pessoas que sofrem de exclusão da sociedade por causa de uma deficiência. Só quem sente as dificuldades 24 horas por dia é que está habilitado a transmitir os problemas que enfrenta. Por isso, as associações devem ser incluídas como parceiros da Câmara Municipal de Braga nesta missão.
Em segundo lugar, como o orçamento da CMB não é ilimitado, precisamos todos de saber estabelecer prioridades. Por exemplo, vale a pena abdicarmos de uma manifestação cultural para que todas as pessoas possam usufruir das restantes? Ou não abdicamos, e para quem não possui todas as capacidades continuamos a permitir que vivam numa autêntica Barca do Inferno?
Mário Queirós, dirigente da Iniciativa Liberal e Professor do Ensino Superior e Sérgio Gomes, dirigente da Iniciativa Liberal e Doutorando em Eng.ª pela Univ. de Santiago Compostela