Apesar de possuir uma economia quase dez vezes superior à portuguesa e de isso poder inibir muitas comparações, Espanha tem demasiado em comum em termos históricos e culturais com Portugal para não merecer uma monitorização regular e cuidada, acompanhando as suas opções estratégicas e aprendendo com os sucessos e fracassos do seu tecido empresarial. E isso é ainda mais verdade quando falamos no setor empresarial familiar, onde tantas semelhanças existem nos atributos ou nos desafios dos dois lados da fronteira... mas também diferenças relevantes.
Este artigo pretende estimular um olhar mais próximo e frequente à realidade do setor empresarial familiar espanhol, desenhando sempre que possível um paralelo com o português para entender diferenças, semelhanças e posições relativas. Para que isso nos possa inspirar a fortalecer o nosso percurso.
A. Uma perspetiva de dimensão
Uma questão de escala que não é só explicada pela dimensão relativa do PIB
Segundo o Ministério da Indústria espanhol, existem mais de dois milhões de empresas familiares em Espanha que representam 65% a 70% do Produto Interno Bruto (PIB) e cerca de 75% do emprego privado – ou seja cerca de nove milhões de pessoas trabalham para empresas familiares. Em Portugal, as percentagens acima são praticamente idênticas – mas as estatísticas apontam para cerca de um milhão de empresas familiares, o que significa que, em termos relativos ao PIB, existem em Portugal cinco empresas familiares por cada espanhola, ou dito de outra forma a dimensão média das empresas familiares em Espanha é cinco vezes superior à de Portugal. A heterogeneidade dos tecidos empresariais sugere caução, mas é difícil evitar referir a expressão do handicap de escala nacional que se faz sentir nesta como em tantas outras análises.
Um batalhão de grandes grupos familiares com visibilidade mundial
Em 2023, Espanha coloca onze grupos no ranking EY St Gallen dos 500 maiores grupos empresariais a nível mundial. A Inditex, empresa fundada por Amancio Ortega, lidera o pódio das empresas espanholas pela primeira vez e ocupa a 51.ª posição. Segue-se a Mercadona em 54.º lugar e o El Corte Inglés em 117.º lugar. Acciona, Gestamp, Ferrovial, Grifols, Catalana Occidente, Antolin-Irausa, Prosegur e Técnicas Reunidas completam a armada espanhola neste top 500. Onze grupos, na sua maioria com posições de mercado e reputação de nível mundial na sua área e que mostram a força do cume do setor empresarial familiar em Espanha.
Portugal tem dois grupos na lista, Jerónimo Martins em 69.º lugar e Sonae em 231.º lugar. Pela sua dimensão e pelo grau de internacionalização conseguido, a posição do Grupo Jerónimo Martins é particularmente notável.
Portugal: uma visão fosca do que se passa do outro lado
Estes resultados estão em linha com a lógica de dimensão das duas economias e em muitos setores específicos, já saindo do universo familiar, nos depararemos com situações similares – por exemplo em construção, automóvel, aeroespacial ou serviços financeiros. Nada de novo aqui. Mas em situação competitiva direta emerge, como bem se sabe, a maior força espanhola e o modelo de proteção de mercado criado no país há tantos anos assente numa profunda cultura de alianças empresariais. E questionar-me ia se o leitor conhece o setor de atuação e os aspetos básicos do segundo conjunto de grupos acima referido: Gestamp? Grifols? Antolin-Irausa? Técnicas Reunidas? Todos grupos familiares maiores do que o terceiro grupo familiar português e com trajetos notáveis a nível local e internacional.
B. Uma perspetiva dos modelos de gestão em empresas familiares
O ponto de partida, há 30 anos
Em Espanha, estudos do Prof. Alberto Gimeno, da ESADE e de outros analistas mostram que só no início da década de 80 as empresas familiares começaram a ser consideradas como algo mais do que meras organizações empresariais informais, uma situação que depois se transforma rapidamente ao longo das últimas quatro décadas.
Até essa altura, a imagem social das empresas familiares em Espanha era bastante convencional e mesmo pouco favorável, marcada como nepotista, pouco profissional em termos de gestão e adversa a ambientes competitivos abertos. A empresa familiar era de facto considerada como uma organização empresarial subdesenvolvida.
Mas as empresas familiares mais competentes evoluem naturalmente e muitas abrem a sua propriedade ao mercado, um sinal de garantia da competência e do potencial dessas empresas de "alto nível" em oposição à imagem tradicional das empresas familiares. Ao mesmo tempo, o facto de algumas empresas espanholas de sucesso como a Inditex (Zara), Mango ou Puig (Nina Ricci, Paco Rabanne) se terem rotulado intencionalmente como empresas familiares criou um paradoxo na comunidade empresarial. Era um sinal de que as empresas familiares não eram necessariamente organizações subdesenvolvidas mas que existiam grupos empresariais com uma gestão profissional sofisticada ao melhor nível dos seus pares europeus.
O panorama de evolução em Portugal não foi muito distinto – mas foi mais rápido. Não obstante a generalidade do tecido empresarial familiar sofrer dos mesmos problemas de imagem, sobretudo face à predominância da indústria tradicional de mão-de-obra intensiva, já se destacava a existência de grupos familiares bem estabelecidos e com uma presença económica relevante antes da década de 80. Esses grupos assumiam-se claramente como familiares mas lançavam-se numa gestão aberta ao mercado mais rapidamente do que as empresas espanholas. Em 1987, quando o BCP abriu o capital ao público, já havia mais de 80 empresas cotadas na Bolsa nacional.
Por força da ambição de profissionalização e crescimento e apesar do convencionalismo das indústrias tradicionais, com a presença em Bolsa os grupos familiares portugueses dominantes abraçam mais rapidamente uma rota de governação moderna do que os seus congéneres espanhóis.
O advento do pilar fundamental da governação acionista: o Protocolo Familiar
Voltemos a Espanha. Como resultado do ímpeto de desenvolvimento, as empresas familiares começaram a preocupar-se com a identificação e solução dos principais problemas que surgiam no seu modelo de gestão: sucessão e conflitos. O Protocolo de Família nasce para lidar com esses problemas, estabelecendo regras específicas entendidas e aceites formalmente por todos os membros da família acionista e, muitas vezes, pelos seus próprios descendentes.
Graças ao apoio de consultores externos especializados com as competências necessárias, a adoção de Protocolos de Família em Espanha torna-se uma prática corrente, abrangendo não só as maiores mas também muitas médias empresas familiares. A incorporação dos regulamentos e da formalização das relações foi relativamente fácil para as empresas familiares. As famílias foram orientadas para a resolução dos problemas de convívio familiar e das suas empresas, estabelecendo regras claramente definidas, tais como "trabalhar fora da empresa familiar antes de entrar", "nenhum cônjuge tem o direito de comprar/possuir quaisquer ações" ou "os acionistas podem sair vendendo as suas ações internamente a um preço previamente definido". Estas regras básicas convencionais foram amplamente adotadas e continuam hoje a ser melhores práticas de governação acionista em empresas familiares.
Em Portugal, o Grupo José de Mello, sob a liderança de José Manuel de Mello, foi precursor na montagem de um modelo de governo acionista assente num Protocolo de Família estruturado e completo. Outros grupos familiares seguiram as suas pisadas, mas ainda hoje algumas grandes e a maioria das médias empresas familiares carecem de um Protocolo de Família de qualidade que responda aos desafios da sua governação. Por isso nesta dimensão do Protocolo de Família em grupos familiares Espanha ganha clara vantagem.
A gestão do processo de sucessão
Tradicionalmente, o processo de sucessão era visto como o direito e a responsabilidade da geração no poder ou do principal membro da família da geração mais velha. Esperava-se que o líder fizesse a escolha certa na seleção de quem viria a seguir para o seu lugar e que preparasse um plano de formação e desenvolvimento para o sucessor.
Esta abordagem baseava-se no pressuposto implícito de que o novo líder tinha de ter um perfil idêntico ao do seu antecessor, mas obviamente a maior parte das vezes não era assim. O novo líder nunca poderia ser idêntico ao seu antecessor, porque cada pessoa cruzou caminhos diferentes e possui uma personalidade e um perfil de competências único. A sucessão suave era por isso o resultado de um período muito longo de convivência, durante o qual ambos os líderes partilhavam o poder.
Foi por isso inevitável que, ao longo deste período, os Protocolos de Família em Espanha passassem a endereçar a questão da sucessão estabelecendo processos firmes para escolha de candidatos, para a sua preparação e avaliação e finalmente para a escolha do novo líder e gestão da transição. Um grande passo na profissionalização do modelo de governo acionista e societário.
E em Portugal ? Face ao que se disse, não surpreende que uma gestão adequada do processo de sucessão não seja tão frequente, até nos maiores grupos familiares, como o demonstrou o estudo desenvolvido pela ARBORIS há dois anos. E este é, como tantas vezes temos sublinhado, um dos principais desafios com que as empresas familiares se irão defrontar num futuro que não é nada longínquo. Também nesta dimensão as empresas familiares portuguesas parecem estar aquém das suas congéneres espanholas.
O aperfeiçoamento da governação
Com o Protocolo de Família, a governança acionista e societária ganha uma importância muito maior na gestão das empresas familiares, sobretudo se cotadas à medida que o mercado de capitais se torna mais exigente nesta dimensão. Identificar os órgãos de decisão adequados, os conselhos de família, os conselhos de administração e as comissões executivas passou a ser elemento crítico no centro das discussões destinadas a melhorar as empresas familiares.
A governação implicou também mudanças na tomada de decisões, levando muitas vezes uma empresa familiar a evoluir de uma entidade impulsionada pela decisão individual para uma tomada de decisão em grupo. O problema não era quem tomava decisões, mas como elas eram tomadas. E era frequentemente necessário determinar em que medida a análise interna era suficiente ou se deveriam ser chamados peritos externos. Isso trouxe a necessidade de tornar as empresas familiares menos dependentes de pessoas específicas e abriu a porta à incorporação de profissionais externos ao círculo familiar, juntamente com o desejo de que os membros da família mantivessem o controle sem permanecer em cargos de gestão. A profissionalização surge assim na agenda do tecido empresarial familiar como um instrumento fundamental para o seu futuro.
A cotação em Bolsa passa a espoletar a necessidade de implementar e demonstrar um vasto conjunto de melhores práticas de governação. Olhando para o contexto atual, a maioria das grandes empresas espanholas estão cotadas, mas ainda restam exceções importantes que mantêm o capital totalmente fechado, como é o caso da Mercadona, do El Corte Inglés ou da Antolin-Irausa, três dos dez maiores grupos familiares do país.
Dois exemplos recentes mostram que os grupos familiares espanhóis estão a aderir de forma mais tardia a contextos os quais o modelo de governação é mais apurado. Há alguns meses, Espanha atraiu a atenção dos meios de comunicação empresariais a nível global com duas notícias: primeiro, o IPO de 3 mil milhões de euros lançado pelo grupo de cosméticos e perfumes Puig – a maior operação do género em anos – e, segundo, a nomeação pela Grifols de um CEO externo, substituindo pela primeira vez um membro da família, como resposta a alegações não comprovadas dos seus relatórios financeiros.
Olhando para Portugal nesta dimensão, é inegável que possuímos uma posição mais avançada: os dez maiores grupos familiares estão todos cotados em Bolsa obedecendo assim aos princípios de ESG que isso implica.
A preservação do espírito empreendedor do fundador
Numa empresa familiar, manter um espírito empreendedor e atuar em conformidade é um elemento cada vez mais decisivo. As empresas familiares têm de ser capazes de se transformar, incorporando novos produtos, penetrando em novos mercados, fortalecendo-as com fortes competências recrutadas no exterior ou implementando novos processos e tecnologias. Isto é possível quando a família está orientada para a criação de valor, quando a família encontra prazer em incorporar "o novo". Isso não significa não dedicar atenção à preservação do legado, mas quando a preservação é o principal motor familiar, as empresas perdem sua capacidade de transformação.
E diríamos que encontramos de forma equivalente esta noção no centro da visão empresarial das empresas familiares dos dois lados da fronteira.
O estabelecimento de alianças
Quando a velocidade é crucial, o crescimento orgânico pode ser muito lento e, em alternativa a operações de M&A, as alianças estratégicas podem oferecer às empresas acesso mais rápido a novos mercados, tecnologia de ponta e conhecimento especializado. E é comum que essas alianças sejam feitas entre empresas concorrentes – como claramente acontece no setor da construção.
É importante salientar que quando a confiança é um problema, algumas empresas preferem estabelecer alianças com outras empresas familiares, reforçando a sua visão partilhada a longo prazo. O fortalecimento dos laços e das relações entre as empresas familiares pode reforçar as oportunidades competitivas.
Desde meados da década de 80 e com o importante estímulo do governo e da Casa Real, a formação de alianças em Espanha passou a ser um instrumento poderoso e muito mais comum – passou a tornar-se um dos pilares mais distintivos da cultura empresarial espanhola. De facto, Espanha tem sido um modelo a nível europeu em termos da alavancagem em alianças para fortalecer a economia, seja para o mercado doméstico seja para o exterior. Sabemos que muitos criticam certas práticas de alianças como protecionistas, mas é difícil criticar um país quando as suas empresas estão unidas há décadas na proteção dos seus interesses comuns e, afinal, no superior interesse económico do país.
Em Portugal o modelo de alianças estratégicas não é tão expressivo ou ubíquo porque arrancou mais tarde e de forma mais lenta. É certo que possuímos exemplos inspiradores que demonstram que Portugal é capaz de estar ao nível de Espanha nesta dimensão. Mas está longe de ser assim. Convivendo com grandes ou médios grupos empresariais familiares em Portugal vemos que não existe ainda a profunda intimidade no comum desenvolvimento de negócios que a cultura de alianças criou em Espanha.
C. Um balanço e uma perspetiva de futuro
Colocadas de lado as questões de escala, que são claramente uma fonte de vantagem competitiva estrutural, os grupos empresariais familiares em Espanha apresentam atributos de vantagem sobre os portugueses em muitas dimensões... mas vemos que o contrário também é verdade noutras.
Mas há nesta abordagem a Espanha vista de Portugal duas dimensões que sobressaem como oportunidades para Portugal ir mais longe e que merecem ser realçadas.
Em primeiro lugar, a dimensão da economia espanhola e o arrojo com que muitas empresas familiares espanholas atacaram com sucesso um mercado quase global são uma fonte de inspiração para as empresas familiares portuguesas. Não há razão válida, intransponível para não ter havido até hoje em Portugal uma Inditex, uma Puig ou uma brutal Gestamp.
Em segundo lugar, a profunda de cumplicidade no seio do setor empresarial espanhol expressa na cultura de alianças que tantas vezes vemos materializada a nível doméstico e externo é uma realidade que merece cuidada reflexão em Portugal. Temos bons exemplos em vários setores mas, mesmo não tendo a mesma dimensão, não se justifica que a união não seja maior. Se necessário recorrendo a grandes empresas doutras origens.
Por tudo isto, Espanha deve ser olhada de frente, e não de costas, capturando o que tem de melhor para nos ensinar. Temos muito a ganhar – mas Espanha também. Aliás, não espantaria que já o estivessem a fazer com o muito que nós, do nosso lado, temos de melhor.
Empresário, Gestor e Consultor