Imagine acordar todos os dias e sentir que não descansou, como se cada gesto, por mais pequeno que seja, exigisse um esforço sobre-humano. A sua vida reduzida a uma batalha diária contra uma exaustão tão profunda que gestos banais, como tomar um banho ou preparar uma refeição, parecem montanhas intransponíveis. Diariamente sofrer dores constantes, dificuldades cognitivas com uma névoa mental persistente e uma incapacidade quase total de realizar atividades que antes eram triviais.
Esta é a realidade enfrentada por pessoas que vivem com Encefalomielite Miálgica (EM), também conhecida como Síndrome da Fadiga Crónica (SFC). Reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma condição neurológica incapacitante, a EM/SFC permanece, à margem do debate público e das políticas de saúde em Portugal. O resultado? Cidadãos a definhar em silêncio, confrontados com o estigma, a incompreensão e uma gritante falta de apoio.
A pandemia de covid-19, ironicamente, lançou uma luz crua sobre esta problemática negligenciada. A persistência de sintomas como fadiga extrema e dificuldades cognitivas em sobreviventes da infeção pelo SARS-CoV-2 revelou uma conexão alarmante em que alguns estudos sugerem que cerca de metade dos casos de covid longa preenchem os critérios diagnósticos da EM/SFC. Isto revelou uma nova face desta doença complexa, cujo impacto continua subdiagnosticado. A questão premente é: estamos, enquanto sociedade e sistema de saúde, preparados para identificar e tratar esta nova vaga de doentes? Ou continuaremos a virar as costas às suas necessidades, perpetuando o seu sofrimento?
A singularidade da EM/SFC reside na ausência de biomarcadores objetivos. Não existem exames laboratoriais ou de imagem que confirmem inequivocamente o diagnóstico. Este depende, exclusivamente, da avaliação clínica e dos sintomas relatados pelos pacientes, tornando a doença “invisível” para muitos profissionais de saúde e alimentando o desconhecimento generalizado. Em Portugal, a carência de estudos epidemiológicos robustos e de diretrizes específicas para o diagnóstico e tratamento agrava ainda mais esta situação, por isso vivemos na sombra da “fadiga”! Como podemos oferecer o suporte adequado se sequer conhecemos a dimensão real do problema? Quantas pessoas continuam a viver sem diagnóstico, sem tratamento, sem esperança?
As consequências da EM/SFC reverberam muito além do indivíduo afetado. O impacto estende-se às famílias, frequentemente transformadas em cuidadores a tempo inteiro, e à economia nacional, com a perda de produtividade e os custos indiretos associados à doença. Qual o preço desta inação? Qual o impacto desta doença silenciosa na nossa sociedade?
Os desafios enfrentados por estes doentes são multifacetados. No ambiente de trabalho, podem confrontar-se com a discriminação pela falta de compreensão e adaptação às suas limitações. No contexto escolar, crianças e jovens diagnosticados são privados de apoio adequado, comprometendo o seu desenvolvimento. No plano social, o isolamento torna-se uma realidade dolorosa. Como sociedade, estamos verdadeiramente preparados para construir um ambiente inclusivo que acolha e apoie estas pessoas?
Nós na Universidade Católica Portuguesa, atentos a esta realidade premente, juntamos a nossa voz ao apelo por ações concretas e urgentes. É imperativo o reconhecimento oficial da EM/SFC como doença crónica incapacitante, em consonância com os critérios da OMS. Urge a criação de diretrizes nacionais para o diagnóstico e tratamento, a implementação de campanhas de sensibilização e formação para profissionais de saúde, a criação de centros de referência no Serviço Nacional de Saúde (SNS), com equipas multidisciplinares capazes de oferecer cuidados integrados. A questão central permanece: por quanto tempo mais permitiremos que esta pandemia silenciosa continue a devastar vidas? Como cidadãos, como profissionais de saúde, como decisores políticos, temos a responsabilidade inadiável de agir. O silêncio cúmplice não é uma opção. Juntos, podemos fazer a diferença. A escolha é nossa. Estamos dispostos a agir?
Diretor da Escola de Enfermagem (Porto) da Universidade Católica Portuguesa