O que terão pensado os nómadas tuaregues ou os civis argelinos que conseguiram ver, ao longe, o que parecia ser uma manifestação de ira de um deus muito zangado com os humanos? O testemunho do argelino Ahmed el-Hadj Hamadi, que vivia num povoado situado perto do local onde eclodiu a primeira bomba atómica francesa, em pleno Saara, é impressionante.
Era de manhã quando soldados gauleses o apertaram dentro de um edifício, juntamente com os restantes membros da sua comunidade. As ordens que depois receberam eram simples, embora brutas: tinham de ficar deitados no chão, fechar os olhos e tapar os ouvidos. Seguiu-se um som que Hamadi jamais tinha escutado, como se fosse “o mundo a chegar ao fim”, isto enquanto as janelas eram inundadas por um jorro de luz branca e intensa. O fio de eletricidade pendurado no teto começou a baloiçar de um lado para o outro e a lâmpada que estava na sua ponta acabou por estilhaçar-se. “Pensei que era o apocalipse. Todos nós pensámos. Julgámos que poderíamos morrer”, relembra mais de meio século depois, à Al Jazeera.
Todavia, os donos daquela terra, os colonizadores franceses, não se ficaram por aí. Tinham algo mais a exigir aos residentes apanhados desprevenidos e a quem não foi dado qualquer aviso sobre os perigos que vinham aí, causados pela radioatividade. Uma espécie de aldeia tinha sido construída na área a atingir, com animais incluídos, para ver em que estado tudo ficaria, após o boom. “Depois da explosão, fomos enviados para recolher todo o lixo no local. O chão estava todo queimado, branco, líquido”, recorda Hamadi.
Esta história, assim contada, parece surreal, bárbara, distópica. Infelizmente, aconteceu mesmo e faz parte de outra história, bem maior, onde arrogância, ideias de grandeza, poder, mentiras e ciência sem ética se juntaram, com consequências que ainda hoje não conseguimos perceber bem quais foram e até onde chegaram.
Como é que tudo começou e para quê? Perguntem ao ‘louco’
A bacia de Tanezrouft é uma das regiões mais inóspitas do deserto do Saara. Chamam-lhe de ‘Terra do Terror’ devido à sua implacável hiperaridez e temperaturas infernais, um sítio que só os nómadas tuaregues têm coragem para atravessar ou permanecer, onde não se encontram vestígios de água ou vegetação. Um ocidental, ou, se quisermos ser mais específicos, um francês do período em que a Argélia era ainda uma colónia gaulesa, talvez dissesse que ali começava o fim do mundo, uma espécie de outra dimensão em que as regras e as ‘boas maneiras’ europeias não precisam de ocupar lugar. O sítio perfeito, pensaria ele, para experimentar uma outra espécie de terror, descoberto por cientistas e explorado por militares: a bomba atómica.
O relógio aponta para os quatro minutos após as sete da manhã, e, noutras partes do país, com o calendário a marcar 13 de fevereiro de 1960, alguns argelinos continuam a sua luta, bastante encarniçada e pejada de cadáveres, pela independência do país. Uma insurreição despoletada seis anos antes e que só terminaria em 1962, com a vitória armada dos franceses, mas uma clara derrota política destes. Não havia mesmo forma de mudar o novo sentido do mundo, após a Segunda Guerra Mundial, daí que a única solução foi ceder e dar a esta região do Magrebe o que já todos queriam em África, ou seja, um lugar entre as nações independentes, livre do jugo colonial europeu.
Voltemos à famigerada hora apontada pelo relógio francês. Quem estava a olhar para os ponteiros e qual o motivo? Há um contexto. Ao mesmo tempo que o velho e decadente sonho colonial se desmoronava, uma nova doutrina começava a tomar lugar como fonte de poder, à medida que a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, as duas únicas superpotências que restavam, se tornava mais quente e causava uma sensação constante de ameaça e medo. A ideia, explicada de forma simples, era a de que na nova era inaugurada pelo lançamento da bomba atómica sobre Hiroxima, em 1945, a nação que dispusesse de um arsenal nuclear teria na sua posse, igualmente, uma ferramenta militar e política de dissuasão, capaz de evitar um ataque por parte de outros estados, inclusive os que tivessem armamento nuclear.
A doutrina MAD (Mutually Assured Destruction, ou seja, Destruição Mútua Assegurada), como ficou conhecida, um acrónimo que, traduzido para português, significa ‘louco’, defendia que se um país fosse atacado por armas nucleares, então este teria de ter a capacidade de responder ao atacante na mesma moeda. Dito de outra forma, quem atirasse a primeira pedra arriscava-se, depois, a levar com a segunda e a ficar, igualmente, com a cabeça partida ou moribundo, simplificando de forma grosseira. Deste modo, criava-se um efeito de dissuasão, em que nenhuma das potências nucleares atacaria uma outra ou os seus aliados, devido ao medo de represália e de uma destruição nuclear capaz de matar milhões e atirar a civilização humana para a idade da pedra.
O presidente francês Charles de Gaulle, que ocupou o Palácio do Eliseu entre 1959 e 1969, apesar de, ideologicamente, estar nos antípodas do que defendia o politburo soviético, também torcia o nariz à possibilidade de ficar na dependência dos Estados Unidos (nação pela qual não morria de amores, muito pelo contrário) ou do Reino Unido. Ainda antes de chegar ao poder, usando o estatuto de herói da Segunda Guerra e de figura política influente, defendeu, em 1954, que o país necessitava do seu próprio arsenal nuclear. Nesse mesmo ano, o governo gaulês deu autorização para o desenvolvimento da sua própria bomba nuclear. Uma vez sentado na cadeira de presidente, de Gaulle autorizou que, precisamente a 13 de fevereiro, a norte da bacia de Tanezrouft e dentro das fronteiras de uma colónia que lutava pela independência, se fizesse o primeiro teste atómico.
Um comprido cogumelo, pouco depois das sete horas locais, estirou-se pelo céu acima, acompanhado de um clarão tão grande que mais parecia que uma segunda estrela tinha nascido no firmamento, para tornar o Saara ainda mais infernal. Uma detonação fruto da fissão nuclear (a chamada Bomba A), capaz de libertar energias incríveis: esta explosão libertou uma quantidade de energia equivalente a 70 quilotoneladas, quatros vezes mais do que a bomba norte-americana que arrasou Hiroxima, no Japão, indica a Comissão Preparatória para o Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares. A partir de 1968 os franceses passam a fazer testes com a mais poderosa Bomba H, uma bomba termonuclear, mas já fora do continente africano.
Muito se fala dos efeitos da radiação nos habitantes de Hiroxima, Nagasaki ou Chernobyl, mas, infelizmente, quem vivia no norte de África também não escapou ao envenenamento por radiação, causado pelos engenhos nucleares franceses. A essa história, que o governo francês tentou ocultar da opinião pública e que muita tinta ainda faz correr, já lá iremos, mais à frente.
De frisar que, até 1996, os militares franceses conduziram um total de 210 ensaios nucleares – o último deles nas águas da Polinésia francesa, no Oceano Pacífico. Só na Argélia foram conduzidos 17 testes nucleares, até 1967. Ou seja, já depois da independência da Argélia: franceses e argelinos chegaram a acordo para que se continuasse a testar bombas atómicas no deserto do Saara. Os primeiros quatro foram testes nucleares atmosféricos (as bombas explodiram a uma certa distância do solo), os outros 13 foram conduzidos subterraneamente.
Sim, é verdade, jogou-se no século XX um jogo muito perigoso de xadrez, usando as armas nucleares como peças de tabuleiro. Apesar de termos sobrevivido ao Armagedão, o que, para os defensores da teoria MAD, prova que tinham razão, a verdade é que, hoje em dia, face a uma realidade social, económica e política que parece cada vez mais imprevisível, marcada por uma nova ascensão do nacionalismo populista e de retóricas que dividem cada vez mais, no plano das ideias, a humanidade, subsistem nove países que detêm ogivas nucleares (Israel não o assume, oficialmente) e outros que começam a pensar na possibilidade de as conseguir produzir. Mas a antiga ordem geopolítica, aquela em que o risco da guerra nuclear estava contido pelas duas superpotências, estabilizado dentro das dinâmicas relativamente previsíveis da Guerra Fria, desvaneceu, e, com ela, os velhos consensos entre as nações parecem quebrados. Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China são as únicas nações que se mantêm como signatárias do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, por agora. Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel continuam de fora.
Ironicamente, o que os franceses fizeram no passado voltou para os assombrar, embora de uma forma que poucos pudessem, à época, prever. Ao que parece, as nuvens de poeira que regularmente vêm do Saara e que chegam à Europa, incluindo França, contém a radioatividade dos testes que aí se fizeram. Os franceses chamavam à sua força de dissuasão nuclear de force de frappe – força de arremesso. Parece que o boomerang por eles arremessado voltou às mãos do dono. Mas há motivo para recear de cada vez que nos disserem que vem aí uma nuvem de poeira do Saara?
Átomos radioativos iguais aos que afetam Chernobyl e Fukushima viajaram com a areia do Saara em fevereiro, mas não há motivo para alarme
Em fevereiro deste ano, o continente europeu foi duas vezes sobrevoado por densas nuvens de poeira vindas do deserto do Saara, nomeadamente da região argelina. No primeiro fim de semana do mês, por exemplo, a atmosfera no sul da Europa, especialmente em França, parecia o cenário de um filme distópico de ficção científica: o céu estava tingido de um amarelo ocre e uma fina camada de poeira cobriu algumas regiões mais afetadas, algo bem visível nos vidros das casas e dos carros.
Estes fenómenos, com nuvens de poeira que vêm do Saara e viajam, a grande altitude, até sítios tão distantes como a Escandinávia, o Brasil ou os Estados Unidos, podem ter origem em diferentes partes deste deserto e ser despoletados por outros fenómenos atmosféricos (vindos de outras partes do continente africano). Há milhares de anos, desde que o Saara se tornou muito mais seco e menos húmido, que tal acontece, mas esta intricada dinâmica global só começou a ser muito bem estudada há relativamente pouco tempo, graças, em grande parte, às imagens obtidas pelos telescópios que enviámos para a órbita terrestre, como é o caso dos satélites do programa Copernicus, o ambicioso projeto de observação e monitorização da Terra pago e gerido pela União Europeia.
Aliás, foi o serviço de informação disponibilizado pelo Copernicus que avisou, com antecedência, sobre a viagem para norte das duas nuvens que atingiram os europeus, em fevereiro. O problema é que, desta vez, estavam mais carregadas de partículas do que costuma acontecer em média, e isso é difícil de descobrir com quatro ou cinco dias de antecedência, fazem questão de frisar os responsáveis pelo serviço de monitorização do Copernicus.
Passemos ao capítulo seguinte, aquele em que entram átomos radioativos com mais de 60 anos e gerados por bombas atómicas, os quais viajaram de um continente para o outro, apanhando a boleia dos ventos que carregam a areia do Saara.
Em Jura, uma região francesa que faz fronteira com a Suíça, os investigadores da ONG francesa ACRO (a Associação para o Controlo da Radioatividade no Oeste), decidiram fazer testes às partículas vindas do deserto africano que caíram naquela zona, a 6 de fevereiro de 2021. Para ser mais concreto, retiraram toda a camada de pó que caiu sobre a superfície de um automóvel e foram logo para o laboratório. O que escondia ela?
De acordo com a análise que a ACRO fez, foram identificados átomos de césio-137, um isótopo radioativo que, em concentrações elevadas, causa sérios danos à saúde humana. Felizmente, os cálculos que elaboraram indicam que os níveis de radiação emitidos por este isótopo, por quilómetro quadrado, não representam qualquer tipo de perigo. Um enorme alívio, porque o césio-137 tem um historial tenebroso diretamente relacionado com os acidentes nucleares de Chernobyl e Fukushima.
Expliquemos melhor, começando pelo início. Um isótopo é uma variante de um átomo – neste caso, estamos perante uma das 40 variantes do átomo césio –, mas dotado de diferente massa, pois tem um número diferente de neutrões no seu núcleo, embora mantenha o mesmo número de protões e eletrões. O césio-137 é gerado de forma artificial, um produto da fissão nuclear que ocorre em centrais nucleares ou após a explosão de uma bomba atómica, e foi precisamente esse isótopo que foi gerado no Saara, aquando dos testes nucleares franceses.
Um isótopo torna-se radioativo quando tem um excesso de energia nuclear. Este excesso torna o átomo instável, passando a emitir radiação ionizante: dito de outro modo, trata-se de radiação capaz de arrancar eletrões a outros átomos ou moléculas, pelo que, quando a radiação ionizante é demasiado alta (devido a uma grande concentração de césio-137 numa determinada zona), representa um perigo para qualquer forma de vida, das plantas aos humanos.
Ao fim de 30 anos, e em média (é preciso frisar), a emissão inicial emitida pelo césio-137 decai para metade (os cientistas chamam a este processo de 'semi-vida'), altura em que se transforma num outro isótopo instável, o bário-137m, o qual dura poucos minutos até decair numa forma estável de bário. Todavia, e como estamos a falar de um valor médio (30 anos), os isótopos de césio-137 podem durar mais tempo, mas a sua radioatividade vai sempre decrescendo exponencialmente. As contas, para se perceber melhor o que está em causa, podem ser feitas de outra forma, e, para isso, vamos abordar quantidades maiores (porque estamos a falar de probabilidades, de uma média), em vez de nos focarmos num só isótopo: se tivermos quatro quilogramas de césio-137, ao fim de 30 anos teremos dois quilogramas, e, passados outros 30 anos, esse valor cai outra vez para metade, para um quilograma, e assim sucessivamente, a cada 30 anos. É por isso que, tanto tempo depois, ainda há sinais de césio-137 dos rebentamentos nucleares na Argélia.
Após os desastres nas centrais nucleares de Fukushima (a 11 de março de 2011), no Japão, e de Chernobyl (26 de abril de 1986), no que é hoje a Ucrânia, foram libertadas quantidades enormes e letais de césio-137 para a atmosfera. Este isótopo ainda é uma das principais fontes de radiação na zona de exclusão que existe em redor da central de Chernobyl. No Japão, nomeadamente na prefeitura de Fukushima, é considerado um dos maiores perigos para a saúde pública, devido às altas concentrações deste átomo que se espalharam em redor, logo após o acidente.
Uma curiosidade. Antes da construção do primeiro reator nuclear, em 1942, nos Estados Unidos, era impossível encontrar no planeta Terra quantidades significativas de césio-137. Tudo mudou, desde então, devido à mão humana. A última vez que existiu tanta quantidade concentrada deste isótopo, acreditam os cientistas, foi há 1,7 mil milhões de anos, fruto de processos naturais.
A radiação transportada da Argélia pelos ventos era muito mais elevada há 60 anos. Portugueses estiveram em perigo?
O investigador Pedro Salazar Carballo, da Universidade de Laguna, situada em Tenerife, a maior ilha do arquipélago espanhol das Canárias, confirma à Euronews que o pó do deserto do Saara que atravessa o Oceano Atlântico, passando por cima das Canárias, “também contém césio-137 dos testes nucleares do governo francês”.
Apesar de o laboratório a que pertence ter descoberto altos níveis de césio-137, em relação ao que é normal encontrar, no pó que chegou em 2020 às Canárias, devido a fortes tempestades, Salazar Carballo reassegura que eles estavam dentro dos limites considerados seguros.
“Na verdade, o que mais nos expõe à radioatividade é o radão natural [um gás] que emana naturalmente do próprio solo”, explica. “Estima-se que entre 5% e 14% dos cancros do pulmão se devem ao gás radão que respiramos, especialmente em espaços subterrâneos e fechados.”
É um facto: só por vivermos na Terra já recebemos, constantemente, radiação ionizante de origem natural, mas, por norma, os níveis são perfeitamente seguros e é por isso que cá andamos há milhões de anos, assim como os restantes animais e plantas. Por exemplo, a chuva de raios cósmicos que entra na atmosfera terrestre liberta radiação secundária, ao chocar com os átomos da nossa atmosfera. Mais. A própria crosta terrestre ainda contém isótopos ionizantes que surgiram durante a formação da Terra. Estes átomos com excesso de energia nuclear acabam por entrar, portanto, no ar que respiramos, na água que bebemos, nas rochas, no solo e nos alimentos que consumimos.
Mesmo assim, há dúvidas que nos assaltam e que precisam de resposta. Regressemos ao passado, aos testes nucleares franceses em pleno Saara. Qual a probabilidade de na década de 1960, e até posteriormente, as nuvens de poeira que ‘migraram’ para a Europa, incluindo Portugal, conterem níveis de radioatividade mais elevados e perigosos do que os atualmente detetados?
Mylène Josset, especialista em radioatividade e responsável pelo laboratório da ONG francesa ACRO, a mesma que encontrou césio-137 na areia que caiu em fevereiro, responde ao SAPO:
“É claro que os níveis de contaminação no pó do Saara devem ter sido mais elevados na altura dos testes”, dispara. “Estes ventos de pó sobre a Europa não são novos e ocorrem frequentemente. Contudo, é difícil avaliar o impacto à época, além de que não sabemos se existem dados sobre o pó [que estava então] contaminado”.
O mesmo diz Maria João Costa, investigadora na área da física atmosférica, pela Universidade de Évora, e que tem estudado o impacto das nuvens de poeira vindas do Saara. “Pode ser possível, até provável, terem ocorrido níveis de radioatividade mais elevados em eventos de transporte de poeira, temporalmente mais próximos dos testes nucleares, mas não tenho conhecimento de estudos ou medições que o comprovem.”
Também contactado pelo SAPO, o investigador Pedro Salazar Carballo fez os cálculos: "Nos 60 anos que já passaram, [após o início dos testes nucleares franceses], a atividade radioativa do césio-137, neste momento, representa 25% do valor inicial, pois já passou o tempo equivalente a dois períodos de desintegração. Portanto, uma tempestade de pó no início da década de 70, igual à que assolou a França em fevereiro, terá tido um nível de césio-137 quatro vezes superior".
Resumindo: níveis mais elevados de radioatividade, provocados pelo césio-137, podem mesmo ter chegado à Europa, aquando da explosão dos engenhos e pouco tempo depois, mas, por agora, não há dados que o provem cabalmente ou, quanto mais, que sejam capazes de indicar se tiveram consequências para a saúde humana. Cientificamente, e no que se refere a este assunto, vivemos na ignorância.
Todavia, existem dados bem concretos sobre até que ponto o nosso país é afetado pelas tradicionais nuvens de areia vindas do Magrebe. “Portugal costuma ser atingido por estas nuvens de poeira e, geralmente, as regiões mais afetadas são o Algarve e o Alentejo”, diz Maria João Costa. “Espanha e outros países na bacia do Mediterrâneo, como a Itália e a Grécia, também são afetados. Por vezes, embora não tão frequentemente, estes transportes também atingem países mais a norte, como ocorreu agora em fevereiro, em que as poeiras atingiram a Europa central”.
Mais algum pormenor importante a ter em conta? “Quando vemos a atmosfera amarelada devido à presença de poeira mineral, nem sempre respiramos essas partículas, pois muitas vezes os transportes ocorrem em altitude, acima de um ou dois quilómetros, pelo que não atingem os níveis mais baixos da atmosfera (junto à superfície). Neste caso, não existem implicações para a qualidade do ar. No entanto, no mês de fevereiro, em alguns dos dias essas partículas atingiram os níveis mais baixos da atmosfera”, salienta.
Autoridades francesas esconderam a dimensão da nuvem radioativa que chegou ao sul da Europa e ao centro de África
No primeiro dia de maio de 1962, quando os franceses conduziram o seu segundo ensaio nuclear subterrâneo no Saara, na região de In Eker, no sul da Argélia, deu-se um incidente que retrata a enorme falta de segurança dos testes que aí foram conduzidos, os quais deixaram populações inteiras à mercê do vento radioativo, do centro de África à Península Ibérica.
A história é contada à Deutsche Well (DW) pelo antigo eletricista francês Jean-Claude Hervieux. Segundo a publicação alemã, “em vez de ficar contido debaixo de terra, pó e rocha radioativas escaparam para a atmosfera”, obrigando todos os que assistiam ao ensaio a fugir, “incluindo dois ministros franceses”. Uma vez nas camaratas militares, “o grupo tomou um banho de duche e teve os seus níveis de radiação medidos”, naquela que foi a única medida de descontaminação que receberam. “Não é todos os dias que se vêm ministros nus”, brinca Hervieux, ao relembrar os acontecimentos à DW. “Quando nos fomos embora da Argélia, cavámos enormes buracos e enterramos lá tudo”, confessa.
Há quem avise que os lugares onde se fizeram os ensaios, na Argélia, ainda hoje se encontram contaminados e desprotegidos, à mercê de curiosos e incautos. “Eu vi os níveis de radiação emitidos pelos minerais, rochas vitrificadas pelo calor das bombas”, diz o físico (aposentado) francês Roland Desbordes, igualmente à DW, após ter visitado os locais, resumindo o que descobriu como “colossal”. “Não são locais que tenham sido enterrados num canto do deserto, eles são frequentemente visitados pelos nómadas argelinos”, com o intuito de encontrar cobre e outros metais dos detritos ainda existentes. Nada aconselhável.
Mas esta nem é a pior parte. Documentos militares confidenciais sobre os testes conduzidos na década de 1960 foram, em 2013, finalmente tornados públicos, após a pressão de veteranos do exército que se queixavam de estar doentes devido a terem sido expostos a elevados níveis de radiação. Tal como frisou a própria imprensa gaulesa, ao ler o que estava relatado nesses textos, o governo francês mentiu, durante décadas, sobre o quão longe se espalharam as nuvens de partículas radioativas geradas pelas explosões.
Por exemplo, um mapa que surge nesses documentos mostra que 13 dias após a detonação do primeiro engenho nuclear, a 13 de fevereiro de 1960, as partículas radioativas já tinham descido pelo continente africano, chegando à República Centro-Africana, enquanto a norte alcançaram a ilha de Sicília e o sul de Espanha. Segundo o site de notícias estatal France 24, “à época, as autoridades militares francesas disseram que a radioatividade da explosão estava limitada ao deserto e que os níveis de radiação eram ‘geralmente baixos’”. Uma cortina de fumo que deixou os militares franceses envolvidos e, acima de tudo, a população civil do continente africano, totalmente às cegas, no que se refere a proteger a sua saúde.
Segundo o grupo de veteranos que fez lobby pela desclassificação dos documentos – sendo que, até hoje, muitos ainda continuam guardados do escrutínio público, escondendo outros segredos –, o exército francês sabia que quantidades significativas de isótopos radioativos, especialmente iodo-131 e césio-137, se estavam a espalhar pela atmosfera e poderiam ser inalados por uma grande quantidade de pessoas no norte de África.
Dezenas de milhares de argelinos ficaram doentes, muitos sem saber o motivo
Só na Argélia, e conforme conta uma reportagem de 2015 da Al Jazeera, estima-se que entre 27 mil e 60 mil pessoas tenham sido afetadas pela radiação: o número mais pequeno é dado pelo Ministério da Defesa de França, enquanto o maior é citado por cientistas argelinos.
A população de Reggane, por exemplo, situada no norte da bacia de Tanezrouft, onde teve lugar o primeiro ensaio nuclear e outros mais, queixa-se dos vários problemas de saúde que afetaram a comunidade desde a década de 1970, e que perduram até hoje. “Bebés nascidos com membros atrofiados, cancros do fígado, estômago e pele, casos de cegueira temporária entre os que viram o brutal clarão de luz, à medida que este rasgava através do Magrebe”, contaram os habitantes locais à Al Jazeera. Alguns muçulmanos estavam a meio da sua oração da manhã quando a primeira bomba despoletou.
Todas estas pessoas, incluindo as comunidades nómadas que vivem na região, viviam na ignorância quanto ao perigo que corriam, por falta de aviso adequado por parte das autoridades francesas. Tampouco sabiam que não deviam remexer nos locais contaminados, em busca de metais ou objetos que depois transformaram em joalharia ou em utensílios de cozinha, por exemplo.
“Os médicos do hospital de Reggane não têm estatísticas, não têm estudos epidemiológicos”, denuncia o franco-argelino Larbi Benchiha ao órgão de comunicação social sediado no Catar, jornalista que se tornou conhecido quando fez dois documentários sobre estes acontecimentos esquecidos – aliás, o próprio admite que só em 1996 teve conhecimento deles, 16 anos após ter ido viver para França.
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* Artigo alterado a 12 de março de 2021. Inclui as declarações ao SAPO do investigador Pedro Salazar Carballo e mais informação sobre como decresce, ao longo do tempo, a radioatividade ligada ao césio-137.