Angola. Antigamente, era um país com muito pouca expressão no que ao desporto-rei diz respeito. Agora, tem estado nas bocas do continente africano, fruto de um modelo progressista. Depois de uma prestação histórica no CAN, com a chegada aos quartos-de-final da competição, os Palancas Negras encontram-se numa fase de notório desenvolvimento que parece não ter fim à vista. A verdade é que, em 2024, ninguém venceu mais jogos internacionais oficiais do que a turma angolana.
O grande responsável pela euforia do povo é lusitano: Pedro Soares Gonçalves. O selecionador de 48 anos conta já com um profundo conhecimento sobre este paradigma, através dos múltiplos anos ligado ao país. Apesar das múltiplas (e notórias) dificuldades orçamentais dos Palancas Negras, os resultados têm sido bastante abonatórios. Se o passado foi adverso e o presente é favorável, o futuro parece bastante promissor. O próprio comandante que o diga.
Nesta segunda parte da entrevista, o técnico português aborda a prestação histórica no Campeonato Africano das Nações, realçando, ainda, os obstáculos que já foram ultrapassados ao longo deste desafiante percurso.
[Veja a primeira parte da entrevista aqui]
Parte II
zz: Esta última edição do CAN trouxe mais visionamento aos treinadores portugueses e às equipas africanas. Sentiu melhorias organizacionais na competição?
Pedro Soares Gonçalves: Desde a chegada de Patrice Motsepe, o atual presidente da confederação, o panorama africano melhorou substancialmente. Apesar disso, a credibilidade da competição ainda não está no patamar apresentado pela UEFA. Por exemplo, no último CHAN, na Argélia, a organização já foi mais digna. Todavia, nós fomos um bocado penalizados pela dinâmica do quadro competitivo. No entanto, a nível de condições, campos de treino, transportação, estádios e planeamento dos jogos não há qualquer razão de queixa. No que toca ao CAN, foi tudo exponenciado. Para além disso, encontraram uma solução, em conjunto dos governos, para ser a CAF e os seus parceiros a organizar tudo. A bitola ficou alta.
zz: Considera que o CAN integra o núcleo de melhores provas a nível internacional?
PG: Na minha modesta opinião, o CAN é claramente a terceira maior competição de seleções a nível mundial, muito mais interessante do que uma Copa América ou uma Taça Asiática. Acho que tem muito mais visualização e muito mais competitividade. Depois, há particularidades provenientes do próprio continente. Todos os jogadores empenham-se de uma forma exponencial cada vez que jogam. Normalmente, também não existem grandes goleadas, fruto do equilíbrio dos confrontos. A implementação do VAR também veio normalizar ainda mais a prova, trazendo a verdade desportiva ao de cima. Apesar das meias-finais terem sido formadas por quatro candidatos, os duelos nunca foram de resultado previsível. A meu ver, este é o encanto do CAN. É algo que se manifesta na imprevisibilidade dos atletas e na ligeireza com que encaram os jogos.
zz: A Angola chegou aos quartos-de-final e igualou o melhor registo de sempre na prova. Quais foram os objetivos definidos pela equipa? Presumo que tenham sido atingidos...
PG: A verdade é que nas outras ocasiões em que a Angola chegou aos quartos-de-final, como a competição só tinha 16 seleções, acabou por passar diretamente para essa fase. Nós ainda tivemos os oitavos-de-final pela frente. Logo, acredito que nós fomos protagonistas da melhor prestação dos Palancas Negras na sua história. Na preparação para o CAN, nós estabelecemos vários objetivos em conjunto. O primeiro a que nos tínhamos proposto era alcançar duas vitórias na Fase de Grupos, algo que a Angola nunca tinha conseguido. O segundo era passar para os oitavos-de-final e o terceiro era ganhar um jogo na fase a eliminar, algo que também nunca tinha sido conseguido pelo país. Quando chegamos aos quartos, definimos que o último desafio desta montanha seria atingir a imortalidade, vencendo o torneio. Acabámos por ser eliminados pela Nigéria, num jogo que foi bastante equilibrado. O adversário acabou por ter mérito na vitória, mas foi uma partida que também podia ter caído para o nosso lado.
zz: Orgulhoso pela trajetória?
PG: O percurso foi muito bom. Potenciou muito a nível interno, não só a seleção como o futebol angolano. Eu, neste momento, sou o selecionador em África há mais tempo no cargo, depois da saída do Aliou Cissé do Senegal. Mostra bem todas as contrariedades que é preciso ultrapassar. Nós já tínhamos tido um ano de 2022 muito positivo, quando batemos o recorde de vitórias num ano civil. No entanto, 2024 tem sido, no fundo, o culminar de todo o trabalho para trás. Todo o nosso esforço está a ter repercussão agora. Eu posso até adiantar que o nível em que estamos atualmente supera, no meu entender, o alto rendimento que tivemos no CAN. Não nos interessa acomodar. Temos que nos reinventar sempre e encontrar, constantemente, novas soluções, dentro das nossas possibilidades.
zz: A Angola é a seleção com mais triunfos oficiais em 2024. Este dado estatístico é mais uma demonstração do progresso que tem vindo a ser realizado nestes últimos ano. Estava a par deste fenómeno?
PG: Quando saiu essa notícia, eu, honestamente, não tinha conhecimento desse dado. Fiquei muito satisfeito. Já estamos quase a chegar ao final do ano, o que já tem algum relevo. Isto pode parecer simplório, mas para a Angola, comparativamente com países de maior dimensão, tem um impacto especial. Neste momento, é uma febre em Angola. Anda toda a gente louca com a seleção.
zz: Cada vitória é festejada com grande entusiasmo?
PG: Sim, são os triunfos que agregam sinergias. O desejável é sempre que os resultados reflitam o plano estratégico e estrutural. Às vezes, a euforia do momento leva-nos a toldar um bocadinho a nossa visão, porque ainda estamos muito distantes dos recursos afetos às outras seleções do topo de África. É algo que tem repercussões nas viagens, nos alojamentos, nas condições de treino e, sobretudo, na performance desportiva. Felizmente, temos vindo a encobrir estas disparidades, com os jogadores a terem muito mérito.
zz: Mister, foi escrita mais uma página dourada no percurso da Angola com a qualificação para a próxima edição do CAN. Quais são os próximos objetivos da seleção e até onde é que esta equipa pode chegar?
PG: O mais recente tem sido mais visível, sem dúvida. Contudo, se eu olhar os registos desde o início de 2022 até hoje, nós perdemos, apenas, três jogos, em 33 partidas oficiais. Um deles até foi na COSAFA, com uma grande penalidade contra nós que foi claramente mal assinalada, já na reta final do duelo. Portanto, isto já reflete aqui uma consistência clara ao nível dos resultados e também da performance desportiva. A verdade é que este ano tem sido especial, fruto destes indicadores invulgares na seleção de Angola. São indicadores que nos dão confiança para enfrentar o futuro. Nestes últimos três anos temos sentido um grande apoio da população, mas o fervor com que se vive agora o futebol aqui é diferente. O país pára autenticamente para ver a seleção. Esta grande mobilização faz-me transbordar de alegria e de energia para conseguirmos ser mais capazes e competentes.
zz: Depú foi afastado de um estágio da seleção angolana, recentemente. O que é que levou a esta medida ríspida?
PG: O Depú é um jogador que já é internacional comigo. Contudo, na sequência da grave lesão que sofreu, lancei o repto para ele estar presente na Taça COSAFA, uma vez que ele não estava a dar continuidade ao bom momento que atravessou no Gil Vicente numa fase inicial. Eu queria que ele ganhasse consistência e que se firmasse na seleção principal da Angola. Ele esteve muito bem, inclusive foi o melhor marcador do torneio. Contudo, há uma lógica comportamental que nós não podemos abdicar. O Depú descorou este ideal num estágio. Ele percebeu imediatamente que errou. A situação obrigou-nos a ser um bocadinho mais enfáticos e, como tal, acabou por ser excluído do grupo. No entanto, eu acredito que serviu de alerta. Uma coisa é certa... nós não pomos um risco em cima de quem não aproveita oportunidades, mas vai certamente para o fundo da lista, enquanto outros estão a ganhar pontos.