Morreu ontem o escritor peruano Mario Vargas Llosa. Prodigioso escritor, marcou a literatura latino-americana como poucos – e esses poucos serão, no fundo, Borges e Garcia Marquez, não mais. Os seus méritos literários são reconhecidos universalmente. Não que isso seja sempre sinal de reconhecimento merecido, mas Vargas Llosa receberia o Prémio Nobel da Literatura em 2010. Em novelas extraordinárias como A Conversa na Catedral e A Festa do Chibo, Vargas Llosa marcaria um estilo e deixaria um legado.
No primeiro livro, publicado quando Vargas Llosa ainda era ideologicamente comunista/socialista, a “Catedral” era o nome de um bar de terceira categoria onde tivera lugar uma conversa entre o protagonista e o amante do seu pai, entretanto falecido. A primeira página do livro tinha inscrita uma das frases mais citadas da literatura espanhola do século XX: En qué momento se había jodido el Perú? Era evidentemente uma reflexão sobre a situação desesperada do Peru durante a ditadura militar de Manuel Odría do final dos anos 40. Desesperada politicamente, porque a repressão e a esterilidade eram a política do Peru. Socialmente, dadas as terríveis desigualdades ao serviço de uma classe financeiramente poderosa que asfixiava tudo o resto, em particular os camponeses que desciam dos Andes para viver na pobreza em Lima. E moralmente, já que o livro era a denúncia de um Estado generalizado de corrupção material e espiritual de todos os envolvidos. Ou de como era impossível sobreviver socialmente se se conduzisse segundo um mínimo de decência moral. O preço a pagar pelo sucesso – mesquinho ou sensacional – era a corrupção. E o efeito da corrupção era a universalização da corrupção – com ou sem a compensação do sucesso.
Na Festa do Chibo, o bode era o ditador Trujillo da República Dominicana. Sanguinário e predador sexual, Trujillo governou a República Dominicana com mão-de-ferro desde 1930 e assim perdurou por mais de 30 anos. Como foi timbre de tantos ditadores que o século XX teve para mostrar, deu carta branca à polícia secreta para torturar e assassinar, fez do seu país um feudo da sua família e do círculo estrito de confiança pessoal e cultivou a adulação da sua pessoa como um pai da nova nação dominicana. A história gravita em torno do assassinato do tirano e, em tempos narrativos cruzados, mas distintos, do regresso de Urania, a filha de um ex-ministro caído em desgraça que Trujillo, com o consentimento vergonhoso do pai, violara quando ela era ainda adolescente. Urania regressava ao seu país depois da morte de Trujillo para enfrentar o pai moribundo e a sua terra violada, como ela, pela violência política.
Mas Vargas Llosa não foi apenas um escritor de novelas. Foi um participante incansável nos acontecimentos políticos, sobretudo os atinentes à situação latino-americana. Desde a juventude até 1971, Vargas Llosa foi comunista, como de resto foram os restantes membros da gloriosa geração literária a que pertenceu. Apoiante do movimento comunista internacional nas suas manifestações latino-americanas, incluindo, numa primeira fase, a revolução castrista em Cuba, a esperança de Vargas Llosa era na revolução que derrubasse o capitalismo. Ponto final. Mas, a partir de finais dos anos 60, começaria a destoar do dogmatismo ideológico dos seus pares. O uníssono apoio a todos os movimentos do totalitarismo comunista, sem esquecer os seus crimes, despertou nele uma resistência que cresceria até à ruptura final.
Foi precisamente a propósito dos crimes do regime castrista que Vargas Llosa percebeu a ruína moral dos intelectuais latino-americanos, a falência do marxismo e da queda inevitável da aspiração revolucionária nos crimes totalitários comunistas. Com a ajuda de filósofos políticos liberais de diferentes estirpes como Raymond Aron ou Isaiah Berlin, mas também do indefinível Albert Camus, Vargas Llosa abraçou a concepção liberal da sociedade livre em detrimento das falsas promessas da miséria e da violência do esquerdismo totalitário. E é muito curioso que a centelha do liberalismo que nunca se apagara na sua consciência, nem nos tempos da adesão ao comunismo, tenha sido o amor à liberdade de expressão e de pensamento – liberdades que fundaram historicamente o liberalismo ocidental.
Depois disso, muitas foram as tomadas de posição que Vargas Llosa publicitou pelo mundo fora. Mas mais interessante foi a reflexão demorada que nos deixou sobre a responsabilidade do intelectual perante o poder. A política criminosa não era possível sem a cumplicidade abjecta do intelectual corrompido pela vertigem ideológica e pela cobardia do servo intimidado pelo poder sem escrúpulos. Em 1984, numa famosa resposta a Benedetti, que o acusara de conivência com as potências da exploração na sua denúncia do intelectual, Vargas Llosa diria que o intelectual era um factor do subdesenvolvimento político da América Latina. Dizia Vargas Llosa que o intelectual latino encarnava um paradoxo trágico, na medida em que combinava a ousadia e a liberdade nas suas obras literárias com um miserável conformismo no plano ideológico e político. Pablo Neruda era precisamente um exemplo desse paradoxo: um poeta genial e um bajulador de Estaline que não pestanejava nem perante a imensidão infinita dos seus crimes. Os intelectuais persistiam em trair a sua responsabilidade cívica recusando a essência do que é ser intelectual: ser livre.
A vida de Vargas Llosa foi o testemunho profundo das grandezas e das misérias do século XX. Além da sua obra literária, também na reflexão sobre a traição dos intelectuais no tempo dele – e no nosso –, Vargas Llosa deixou-nos uma preciosa lição. Façamos por não esquecê-la.
Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira // Miguel Morgado escreve com o antigo acordo ortográfico