Vá-se lá saber por que razões – todas, seguramente, atendíveis, mas sintomáticas da apatia a que nos vamos entregando –, passou despercebida a notícia de que em apenas 24 horas Catarina Martins transitou de deputada do BE para funcionária do partido.
Houve um jornalista em Portugal, Miguel Viterbo Dias, do Observador, que se lembrou de dar uma vista de olhos na papelada apresentada pelos eurodeputados eleitos em maio e descobriu algo que, sim, tem inegável interesse público. E a que mais nenhum colega, portador ou não de carteira profissional, dedicou uma linha ou tão-pouco uma pergunta. Só o comentador José Miguel Júdice quebrou o estrepitoso silêncio que perpassou o espaço mediático, onde são cada vez menos os que pelo menos com as orelhas vão conseguindo sacudir as moscas.
O caso conta-se de uma penada. Após ter sido substituída por Mariana Mortágua como líder dos bloquistas (o que aconteceu a 28 de maio de 2023), Catarina Martins manteve-se em funções na Assembleia da República até 14 de setembro do ano passado. No dia seguinte, de acordo com a declaração de interesses entregue ao Parlamento Europeu, Catarina Martins tornou-se funcionária do partido, com um rendimento mensal de 1100 euros (não sendo especificado se brutos, se líquidos).
Num ou noutro cenário, só alguém cativo num minifúndio mental ou tomado pela popularucha fúria antipartidos poderá considerar que se trata de um valor elevado – e à demagogia, da esquerda à direita, sobre as remunerações dos políticos voltarei em breve. Não é, como se depreende, esse o pecadilho bloquista. Como também não está em causa a legitimidade de qualquer direção para contratar quem entender para prestar ao partido os serviços que tenha por convenientes.
O que se afigura nebuloso é que Catarina Martins, que nunca fora funcionária do BE até ter chegado ao hemiciclo em 2009, tenha passado a sê-lo apenas nos meses de intervalo entre o exercício de funções em S. Bento e a estadia em Bruxelas/Estrasburgo, em meados de julho. Questionados pelo Observador acerca do trabalho desenvolvido pela anterior líder, os bloquistas dificilmente poderiam ter sido mais esquivos, argumentando que "a atividade política durante esse período foi intensa e pública" e que o mesmo já tinha sucedido com outros ex-deputados.
Em política, as coisas costumam ser o que parecem. Neste episódio, sendo evidente que Catarina Martins abandonou o Parlamento nacional com a candidatura ao Parlamento Europeu na forja, o BE não quis deixar uma das suas principais figuras (que permanecia e permanece na Comissão Política) desprovida de rendimento ou sujeitá-la a ofícios de ocasião com prazo de validade reduzido.
Impõem-se, então, algumas questões. Porque é que a contratação não foi assumida e transparente? Sendo um assunto sensível, e estando em causa a contratação e a remuneração de alguém da cúpula do partido, foram acautelados todos os eventuais conflitos de interesses no processo decisório? Por que motivo o trabalho realizado não pode ser detalhado e explicitado, até para que seja suscetível de um primeiro nível de escrutínio, o dos próprios militantes do BE? Qual foi o receio da direção de Mariana Mortágua (que Catarina Martins integra, já agora) de ser consequente com o discurso de que a democracia tem custos e que o pessoal político precisa de ver salvaguardados os períodos de transição entre diferentes funções públicas e inclusivamente antes do regresso ao setor privado?
Além disso, o BE fica novamente exposto ao labéu da incoerência. No pano do moralismo caiu a nódoa da conveniência. O partido que cerra os dentes quando discorre sobre despedimentos nas empresas, sem querer saber das circunstâncias que em inúmeros casos os podem justificar, e que levanta o dedo contra os satânicos patrões é o mesmo que arranja um trabalho com um salário mixuruca (note-se a ironia) à líder que conduziu o maior corte de funcionários de que há memória na Rua da Palma.
Na sequência da hecatombe eleitoral de 2022, com impacto na subvenção recebida, o BE foi forçado a reduzir custos e a pôr em marcha uma brutal reestruturação (adotando a novilíngua empresarial), com encerramento de sedes, despedimentos em massa e cortes nas estruturas distritais e locais, enveredando – veja-se bem – pela "redução do trabalho profissionalizado". O partido antivoluntariado cedia, por fim, às virtudes do labor a custo zero.
Sob a liderança de Catarina, a austeritária – e para gáudio dos draconianos chefes de missão da troika, do frugal Jeroen Dijsselbloem, do infame Wolfgang Schäuble, da insensível Angela Merkel e do sádico Pedro Passos Coelho –, os gastos do BE com pessoal caíram de quase 620 mil euros em 2022 para 346 mil em 2023.
Tivesse a oposição bloquista existência real e não se limitasse a ser um esfregão da linha maioritária e possuísse a comunicação social um crivo mais apertado – desperdiçando menos tempo com cenários descodificados como quem lê a sina na palma da mão, com recados e pressões de fontes cujo anonimato só existe na cabeça de quem produz as notícias, com sondagens que são escalpelizadas ao sabor dos anseios dos seus intérpretes e efabulações típicas de quem só esporadicamente tem contacto com o país que se está nas tintas para isto tudo – e tanto Catarina Martins como Mariana Mortágua seriam obrigadas a explicar o que tentaram, imprudentemente, esconder.
A nenhum político se pode exigir que faça um voto análogo ao das carmelitas descalças nem que se converta num mártir do serviço público. Para esse peditório, há populistas de sobra em todo o espetro partidário e homens providenciais que garantem acabar com videiros e sevandijas assim que se sentem no Palácio de Belém.
No final do século XIX, na ressaca da humilhação infligida a Portugal pelo primeiro-ministro britânico, no seu antipatriotismo patriótico, Guerra Junqueiro escreveu que a revolução urgente não era social nem política, mas moral. O ultimato tanto poderia resultar numa onda de vida nova como no estertor de uma nação moribunda. Só o futuro o diria. O futuro já disse.
Ex-jornalista e especialista em comunicação