Os últimos anos da nossa vida coletiva foram tão erráticos quanto ininteligíveis terão sido decisões centrais que, em conjunto, por convicção ou sujeição, tomámos. Graças a uma sucessão de acontecimentos que permanecem em domínios insondáveis para quem reside em estúdios de televisão, perdemos a aparente sensação de controlo. Sem que soubéssemos como, fomos devolvidos à condição de impotentes perante um fado misterioso, a nós anterior e a nós superior.

Sem âncoras políticas e morais, o fascínio pela bizarria tomou o lugar da valorização da temperança, a implausibilidade entrou no território do expectável e a frivolidade de muitos subjugou a autoridade de poucos. A turba dos teclados, essa, impulsionada por algoritmos e transferida para os órgãos de soberania e de comunicação social, operou uma metamorfose no Estado de Direito, corroendo o que resta das nossas instituições – o sonho inacabado de irresponsáveis, fanáticos e cínicos.

Foi, por isso, com pasmo que, na quarta-feira, li a última página do Público, onde a produção habitual de delírios da senhora que por lá dissertava foi substituída por um inefável arrazoado de um ex-ministro da Cultura do PS. Pedro Adão e Silva propôs aos leitores um “exercício de inferência lógica” para tentar demonstrar que “a conclusão mais simples é também a mais exata”: o teste do pato.

“Se se parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então o mais provável é tratar-se de um pato”, enfatizou o nosso zoólogo de ocasião, para de pronto prosseguir com o embuste argumentativo: “Da mesma forma, se se parece com um golpe de Estado e se age como um golpe de Estado, então o mais provável é tratar-se de um golpe de Estado.”

Louvada seja a ousadia. Pedro Adão e Silva verbaliza sem tibiezas aquilo que muitos socialistas, em público, apenas insinuam: “Tivemos um golpe de Estado em Portugal, mas de uma natureza nova (uma remoção de um primeiro-ministro, perpetrada por meios não violentos).”

Primeiro logro em que Pedro Adão e Silva labora: um golpe de Estado pressupõe que um governo constitucionalmente legítimo seja derrubado. António Costa, além de quase dezena e meia de demissões de governantes aos ombros, tinha 75.800 razões para estar politicamente diminuído. Pediu a demissão ao Presidente da República, que a aceitou. Ponto final. Parágrafo.

Segundo logro em que Pedro Adão e Silva tenta fazer-nos cair: o de que o Ministério Público – que deve ser escrutinado e que não é impassível de crítica metódica e feroz – opera ao serviço de alguém, referindo, com a sonsice que não exibiu no primeiro momento de ardil, que “o problema da justiça não é nem a autonomia nem a independência”. Mais valia ter assumido a presunção (mais própria de conversa de café) de que os procuradores estavam mancomunados com a oposição – qual? - e Lucília Gago (nomeada graças a um arranjinho pouco edificante feito entre Belém e S. Bento) é verbo de encher.

Terceiro logro que devia fazer corar Pedro Adão e Silva: o de que o PS, “depois do legado moral de Sócrates, ficou politicamente tolhido”. Nada mais errado. O PS ficou sem autoridade para olhar de frente para os problemas da justiça porque nunca se quis penitenciar politicamente pelos negros anos de Sócrates. Pior: refugiou-se no conveniente mantra de que “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça” não para salvaguardar o sistema judiciário, mas para proteger quem, como Pedro Adão e Silva, difusor da propaganda socrática na blogosfera e em espaços de opinião nos media, nunca viu o que quer que fosse e quis saber ainda menos.

Mais do que o impulso cínico e o ímpeto iliberal de quem não procura preservar as instituições sobre as quais se alicerça o Estado de Direito, Pedro Adão e Silva mostra-nos a sua verdadeira natureza. Revela-nos (ou confirma-nos) a massa de que é feito. Exibe-nos, como se de plumas cardeais se tratasse, a sua costela menos recomendável.

Para rematar, o colunista regressa à ornitologia: “Em matéria de justiça, ao contrário de outras esferas, há que provar objetivamente, em tribunal, que é de um pato que se trata”. Tomo a liberdade de mudar de ramo para apresentar a conclusão “simples” e “exata” de um teste alternativo: se se parece com um rato, chia como um rato e rói como um rato, então o mais provável é tratar-se de um rato.

Ex-jornalista e especialista em comunicação