Os anos passam, os conselhos de administração do grupo SATA mudam, os governantes regionais vão e vêm, mas os problemas persistem. A recente sentença do Tribunal Comercial de Inglaterra, que atribui à transportadora aérea pública a responsabilidade de pagar à HiFly (companhia aérea privada portuguesa) pelos alugueres em dívida, lembra-nos que num Estado de Direito, o Estado e as suas empresas não podem tudo. O "Cachalote", como ficou conhecido o Airbus A330-200 da Azores Airlines, tornou-se um símbolo de más decisões, gestão ineficaz e ausência de responsabilização, deixando um legado pesado para os contribuintes.
Recuemos ao início desta história. Há quase 10 anos, sob a liderança de Luís Parreirão, a SATA tomou a decisão de renovar a sua frota de longo curso, um processo fundamental para qualquer companhia aérea. O modelo escolhido foi o Airbus A330, com capacidade para 289 passageiros, mas logo surgiram as primeiras falhas. Em vez dos dois aviões inicialmente previstos, o conselho de administração seguinte decidiu adquirir apenas um, para limitar o prejuízo anunciado. Ostentando a matrícula CS-TRY – um nome que, ironicamente, reflete este espírito de "experimentar" (“try”, em inglês) com dinheiro público – o "Cachalote" tornou-se nesse símbolo solitário de uma decisão mal planeada.
O aparelho, que aterrou nos Açores em janeiro de 2016, ficou dois meses parado à espera de certificação da ANAC. O primeiro voo aconteceu no final de março desse ano, ligando Ponta Delgada a Boston num ato inaugural que contrasta com o descalabro que se seguiu: uma festa grandiosa, com pompa e circunstância, rica em discursos, celebridades e uma cerimónia conduzida pelo então presidente do Governo Regional, Vasco Cordeiro. Até o batismo do avião com o nome de Ciprião de Figueiredo, figura histórica muito apreciada nos Açores, foi apresentado como um símbolo de esperança e ambição. A escolha de Nelly Furtado, cantora com raízes açorianas, como madrinha deu ao evento um toque glamoroso e internacional. Foi ali, aliás, que a SATA deixou de ser “internacional” e passou a ser Azores Airlines com uma nova identidade gráfica e visual. Tudo parecia, de facto, eleitoralmente perfeito. No entanto, por trás das luzes e dos aplausos, escondiam-se problemas estruturais que já eram evidentes.
Os custos do contrato de leasing, somados às despesas de manutenção, resultaram num prejuízo que se calcula ter ultrapassado os 40 milhões de euros. O aparelho, que deveria reforçar a operação na América do Norte e expandir as ligações aéreas, tornou-se um peso morto para a Azores Airlines. António Luís Teixeira, ex-presidente do Grupo SATA entre 2018 e 2019, admitiu recentemente em comissão parlamentar regional, que a decisão de adquirir o A330 foi "mal pensada e mal projetada". Mesmo nos meses de maior utilização, durante o verão, os custos eram superiores às receitas, tornando impossível equilibrar as contas. Quando a sua administração assumiu funções, foi obrigada a suspender a operação do avião devido aos elevados custos. Chegou a ser projetada a entrega da aeronave em regime de leasing à empresa privada portuguesa Hi Fly, mas também essa operação acabou por não se concretizar e esta sentença veio esclarecer a litigância entre as duas empresas.
Todo este caso não é apenas um exemplo de má gestão empresarial; é também um reflexo de como as empresas públicas são frequentemente usadas como palco político e, lá longe, nos Açores, fica ainda mais fácil. No setor privado, cada cêntimo investido é minuciosamente analisado, com foco no retorno. Os acionistas exigem rigor e resultados, porque o dinheiro é deles. Já nas empresas públicas, o conceito de "dinheiro de todos e de ninguém" torna-se um terreno fértil para decisões erradas e para a falta de responsabilização. Os dirigentes políticos tomam decisões de grande impacto mediático imediato, sem terem de considerar as consequências a longo prazo. Quando chegam os prejuízos, os contribuintes são chamados a pagar a conta, enquanto os políticos que os provocaram – por ação ou por omissão – estão “noutra” e raramente enfrentam consequências.
O caso do "Cachalote" demonstra a necessidade urgente de uma mudança de cultura na gestão das empresas públicas. Estas não podem ser tratadas como instrumentos políticos ou veículos de promoção pessoal. É imperativo reforçar os mecanismos de controlo, transparência e responsabilização… porque para uns terem dançado ao som de “I am like a bird”, em 2016, outros andam agora a limpar e a pagar o prejuízo. Como tão bem canta Nelly numa das suas canções: “promiscuous”!
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo