
O problema da discriminação em Portugal é igual ao de muitos outros países, contudo neste canto junto ao mar plantado utilizam-se métodos originais para lidar com o problema— os bons velhos “paninhos quentes” ou o luso-tropicalismo de Freyre: “Somos maus, mas não tão maus como os outros”, “Então já viram os holandeses, aqueles malvados, como tratam os marroquinos? E os franceses? Cheios de imigrantes que tratam como lixo.”
Serve esta introdução para falar do antissemitismo ibérico, tão antigo que se tornou uma tradição que se ignora como algo que faz parte da pele e, quando se refere por acaso, vem acompanhada da lengalenga do “todos temos um pouco de judeu no sangue. Eles são como nós” ou “pelo menos estamos a dar passaportes aos que foram embora”. De pouco vale explicar que quem recebe o passaporte português paga (e bem) por ele e que a lei foi feita não como reparação a quem se viu obrigado a fugir, mas como compensação para o Estado português e seu orçamento.
Na realidade, a sociedade portuguesa e a sua classe política têm uma estrutural aversão ao povo judeu e aos valores de modernidade que ele representa. O 7 de Outubro não fez mais do que expor essa realidade. Nem quero falar do dia de Israel, quando a comunidade judaica sofreu uma espera no cinema São Jorge (só a polícia de choque e um milagre evitaram uma tragédia), das pichagens a que a sinagoga Kadoorie no Porto e o cemitério judaico em Lisboa foram sujeitos. Quero falar de algo muito mais grave.
Refiro-me à recusa vergonhosa do parlamento português de adotar a definição de antissemitismo, conforme indicação da União Europeia.
Em conformidade com a "Estratégia da UE para combater o antissemitismo e apoiar a vida judaica", o partido Chega apresentou o Projeto de Resolução 729/XVI/1, que recomendava que o governo adotasse a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (International Holocaust Remembrance Alliance — IHRA), que reza o seguinte: “O antissemitismo é uma determinada perceção dos judeus, que se pode exprimir como ódio em relação aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são orientadas contra indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas.”
Esta definição já foi adotada por 31 países, entre os quais EUA, Austrália, Canadá, Reino Unido, Áustria, Alemanha, Bulgária, Roménia e Itália, e não tem força de lei. É clara, amplamente aceite e não impede críticas legítimas a Israel. Inclui exemplos de comportamentos e atitudes antissemitas, tais como: negar ou desculpar o holocausto, culpar os judeus pelo seu próprio genocídio, negar-lhes o direito a ter um país alegando que a existência do Estado de Israel é um empreendimento racista, exigir a Israel um comportamento que não se espera de qualquer outra nação democrática, aceitar a perseguição aos judeus como um castigo por matarem Jesus, considerar os judeus coletivamente responsáveis pelas ações do Estado de Israel.
A decisão do parlamento português mancha a reputação dos partidos que votaram contra ou se abstiveram, e a lista deixa-me de boca aberta: PSD, PS, IL, BE, PCP, IL e PAN. Em particular, o voto de PSD, PS e IL é dececionante, dado que deles se esperava um compromisso mais firme contra o antissemitismo. Seria porque a proposta foi apresentada pelo partido Chega? Será que a tal imparcialidade democrática, em Portugal como noutras partes do mundo, não funciona quando a origem das propostas, mesmo que sejam justas, é a extrema-direita?
Quem diria que, para além do CDS, e da sua antiga relação com a comunidade judaica, o Chega se tornaria o porta estandarte da tolerância perante o silêncio vergonhoso do centro-esquerda e do centro-direita?
O PS justificou sua recusa alegando “dúvidas interpretativas” sobre a definição da IHRA, um argumento frágil e inconsistente, e o PSD e a IL alinharam-se com essa justificação. Curiosamente, há apenas quatro anos, o próprio PSD defendeu publicamente a adoção da definição da IHRA perante um governo do PS.
Face à alarmante escalada de antissemitismo global, é essencial um combate firme e sem concessões. Embora a população judaica seja numericamente pequena no mundo, os judeus continuam a ser um dos principais alvos de crimes de ódio em muitos países ocidentais. Nos EUA, por exemplo, onde representam cerca de 2,4% da população, os judeus foram vítimas de aproximadamente 60% dos crimes de ódio religioso registados, conforme os dados do diretor do FBI, Christopher Wray, em outubro de 2023. No Reino Unido, em 2024, os crimes contra judeus atingiram números absolutos idênticos aos de crimes contra os muçulmanos, apesar da disparidade populacional – 270 mil judeus contra cerca de 4 milhões de muçulmanos.
Um proposta que implemente a definição da IHRA que é clara, amplamente aceite e não impede críticas legítimas a Israel, deve ser aprovada independentemente de quem a propõe. Acabe-se com os “paninhos quentes.” A máxima judaica “não esquecer e não perdoar” não é para inglês ver. E a História não é bondosa para quem coloca a segurança de pessoas em risco por taticismo político.