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O desafio da sustentabilidade do Turismo em Portugal

Um contributo para a nova Estratégia de Turismo 2035.

Desde os primeiros passos tímidos na década de 40, com a aristocracia refugiada da guerra no Estoril, e nos anos 60, com Cliff Richards e outras celebridades a colocar o Algarve na imprensa internacional, passaram na realidade poucas décadas desde que Portugal começou a ser um destino turístico internacional.

Hoje, somos um dos principais destinos europeus, com um crescimento que nos colocou em 2023 acima dos níveis pré-pandemia.  Esgotado o prazo da Estratégia 2027 definida em 2016, o governo assume agora, quase dez anos depois, o compromisso de preparar a Estratégia 2035. Face ao intenso desenvolvimento a nível interno e externo sofrido no setor turístico de 2016 até hoje, o desafio que se propõe abraçar é enorme.

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O governo determina que a Estratégia de Turismo 2035 dê sequência à anterior, consciente de que hoje se enfrentam “novos desafios como a escassez de recursos humanos, tecnologias disruptivas e a importância da sustentabilidade”. As primeiras medidas e ideias que estão a ser comunicadas são ainda naturalmente celulares, sem articulação entre si e carentes de uma visão global com objetivos mutuamente complementares e complementarmente exaustivos. Por outras palavras,  terá seguramente de haver um trabalho estruturado para garantir que a  Estratégia 2035 terá a eficácia necessária para proteger e multiplicar o que está bem, estimular inovações de valor diferencial personalizado e atacar com coragem e determinação o que não está bem por afetar negativamente a imagem do destino ou o valor que ele oferece aos contribuintes.

Em 1998, tive a honra de coordenar o primeiro Plano Estratégico de Turismo a nível nacional, cujos múltiplos resultados assentaram numa identificação e priorização, pela primeira vez, das combinações Região, Produto e Mercado-Alvo para o destino Portugal. Não foi fácil consensualizar que Sol e Mar, Algarve para Britânicos e Holandeses ou Lisboa City Break tinham de ter prioridade nos quatro anos seguintes sobre as outras combinações, mas com uma argumentação bem montada o objetivo foi atingido. Nascem neste trabalho várias inovações que persistem até hoje, como a criação do produto Touring como plataforma para o desenvolvimento do centro e norte do país.  Tendo colaborado com vários governos e associações na  coordenação de planos estratégicos de turismo a nível nacional e internacional há mais de 20 anos, achei que seria de aproveitar esta coluna para deixar o meu contributo, resultado da minha experiência, da observação permanente do que se passa no setor a nível nacional e internacional e na permanente troca de impressões com protagonistas do setor em Portugal e a nível externo.

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1. O Turismo é das poucas áreas onde Portugal tem vencido a nível internacional – o primeiro desafio da Estratégia 2035 é perceber porquê para preservar e multiplicar os fatores desse desempenho

Reconheço que pode ser aborrecido estar a falar de números que todos conhecem, mas em todo o caso não os podemos evitar - ainda por cima porque são bons.

Em 2023, as receitas turísticas representaram 9,5% do PIB e atingiram 48,6% e 19,9% das Exportações de Serviços e Exportações Globais, respetivamente, de longe o setor com maior preponderância nas nossa exportações. O setor não tem comparação em termos de emprego: em 2020, o Turismo empregava 834 mil pessoas de forma indireta, o equivalente a cerca de 18% do emprego total a nível nacional – e mesmo de forma direta o Turismo contribuía para cerca de 6% do emprego total no nosso país.  Os tempos do Estoril de James Bond e do Algarve de Cliff Richard já lá vão – foram registados, em 2023, 30,0 milhões de hóspedes dos quais 18,3 milhões estrangeiros, o que representa um aumento de 13,3 % e 19,1%, respetivamente, em relação a 2022 – num país europeu desenvolvido com uma população residente de 10,46 milhões de habitantes, é notável estar a falar em três hóspedes por residente e por ano.

O Turismo é de facto a maior fonte de criação de valor da economia nacional e com a qualidade das condições diferenciais e o potencial por explorar dificilmente deixará de o ser, pelo menos na próxima década. O crescimento do turismo tem um efeito exponencial na economia pela natureza transversal das receitas que gera e pelo aumento marginal de receitas por turista decorrente de uma oferta cada vez mais rica e inovadora – as tascas, os tuk-tuks, os bares de praia, os festivais de música, as atividades culturais quase espontâneas... dezenas de novos elementos de oferta que explodiram nos últimos 20 anos.

A par e tão ou mais importante do que as estatísticas tem sido a qualidade e intensidade da exposição da imagem da oferta turística portuguesa e o reconhecimento conquistado através de inúmeros galardões, em particular no WTTC,  que tem brindado Portugal como um destino de topo sem comparação como um todo ou na maioria das suas áreas de oferta. De memória creio que nenhum país a nível mundial tem sido tão agraciado e reconhecido pelas maiores instituições de Turismo como Portugal.

Não são poucos os fatores que contribuíram para isso mas antes uma conjugação feliz de muitos fatores que é essencial identificar e compreender agora nesta nova Estratégia 2035, para garantir a sua preservação e mesmo multiplicação para regiões de menor procura turística mas alto potencial.

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2. Existe em Portugal uma atração dos governantes pela preparação de belos “planos estratégicos setoriais” que não são orientados para a ação mas antes para criar um sentimento de trabalho feito e demonstrar o amplo envolvimento que se ofereceu a quem pode levantar objeções audíveis

Em Portugal, os governos e a Administração Pública que tutelam sentem uma atração enorme pela  preparação de estratégias de desenvolvimento setorial de médio e longo prazo. No entanto, não têm frequentemente experiência nem preparação técnica para o fazer, por isso resultam em meses de trabalho e um caderno final de promessas e intenções vagas, que não assumem opções porque são feitos para agradar a todos e ser aplaudidos por salas cheias de pessoas que vão ler esses cadernos como mais jeito der a cada um.

O que é mais grave é que os diagnósticos e os grandes desígnios até podem não estar conceptualmente errados, mas são frequentemente genéricos porque não assumem objetivos concretos para determinado fim, onde têm lugar, quem é o responsável pela sua concretização, qual o prazo,  quanto custam e como são financiados. E, claro, sem isso estes cadernos não são mais do que propaganda política, não são compromissos de mudança firmes e sólidos com métricas objetivas sobre os quais os governantes possam desenvolver o trabalho para que foram nomeados nem ser chamados à responsabilidade pelo sucesso ou pelo falhanço.

Por isso, ao abordar a Estratégia 2035, o governo tem de começar por entender que conceber uma estratégia não é um trabalho de glamour inspiracional nem de despejar para um powerpoint baldes de ideias e iniciativas desconexas recolhidas ad hoc por um grupo de trabalho sem uma coordenação forte, situação agravada por modelos de envolvimento dos stakeholders cujos pontos de vista não são adequadamente discutidos e filtrados, mas meramente incorporados no tal caderno.

Temos em Portugal demasiados exemplos deste problema estrutural ao longo dos últimos 50 anos e que atravessa todos os setores sob governo do Estado: saúde, educação, coesão territorial, agricultura, os recursos do mar, transporte ferroviário, transporte aéreo, o NAL e naturalmente o turismo.

Se é verdade que em planos estratégicos no passado, até mais a nível regional do que nacional, foram feitos trabalhos com qualidade que deram resultados concretos, a Estratégia de Turismo 2027 é um triste exemplo de esterilidade. Basta ler o caderno publicado na altura pelo governo. Mas é mais do que um exemplo - é a procura da excelência nessa esterilidade....

  • em primeiro lugar, pelas dezenas de sessões com milhares de intervenientes arrastadas ao longo de meses  por todo o país, um custo incalculável com o proveito único de evitar futuras discordâncias ou, se algo correr mal, “você estava lá e também aprovou isto” – ou seja de sacudir responsabilidades pelo resultado. Nada no texto do documento mostra uma ideia concreta que possa ter resultado da intervenção de uma dessas pessoas;
  • em segundo lugar porque a estruturação do destino a nível nacional numa lógica de polos de oferta, produtos, mercados e segmentos-alvo e a sua priorização para efeitos de canalização de apoios oficiais não existe da forma estruturada que a sua importância justificaria; ou se existe está tão difusa que perde eficácia;
  • em terceiro lugar porque não incorpora nem dá lugar a nenhum compromisso com ações concretas região a região ou distrito a distrito em termos de desenvolvimento e qualificação da oferta e mesmo de atração da procura. Este é talvez o defeito mais grave e que ao mesmo tempo reflete o caráter estéril da Estratégia 27.

Entretanto veio a pandemia, um cisne negro que aterrou na Estratégia 2027 para acabar definitivamente com qualquer objetivo, qualquer programa e sobretudo qualquer responsabilidade. Quando o mundo reabre, e não obstante a crise da TAP,  não há um adaptação da Estratégia 2027 à nova realidade e Portugal fica vulnerável, enfrentando sérios problemas estruturais – veja-se por exemplo:

  • o excesso de concentração turística nas zonas históricas de Lisboa e Porto;
  • o crescimento do turismo de cruzeiros com o baixo gasto por turista e impacto ambiental;
  • ou a uma procura excessivamente centralizada num punhado de distritos, sem que tenha havido um trabalho sério e profundo para a conduzir para o centro e o norte do país.
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3. A Estratégia 2035 deve contrariar a fraca qualidade de muitos documentos desta natureza no passado e  ser o farol que vai garantir a preservação e valorização do crescimento do Turismo em Portugal, de forma inteligente e reforçando a sustentabilidade do destino nas suas várias dimensões

A nova estratégia tem de identificar e assumir os problemas de uma forma simples e objetiva e comprometer-se com soluções simples e objetivas, suportadas por prazos, custos e financiamento. Tem de identificar oportunidades, orientar os agentes do setor para a sua exploração e definir e apoiar medidas que possam criar mais valor para o destino. Vejamos três exemplos.

O primeiro é a segmentação da procura. É fundamental compreender que a natureza e a origem da procura está a mudar e que isso tem de ter implicações na afinação da oferta – um casal sénior norte-americano que passa três noites em Lisboa quer a mesma experiência do que um grupo de jovens europeias em viagem de despedida de solteira? E que segmentos nos interessam; ambos? A Estratégia 27 passou completamente ao lado na identificação dos segmentos (os segmentos, não os mercados!) que nos interessam no futuro, quão atrativos estamos a ser com eles e como os podemos atrair mais.

O segundo é o pricing do destino. Com tudo o que descrevemos, é fácil aceitar que a reconhecida excelência de Portugal como destino tem de ser valorizada; é ridículo que um dos melhores destinos do mundo seja um destino barato. A polémica das taxas turísticas é um bom exemplo. No caso das cidades ou regiões de maior procura, a introdução ou revisão de taxas turísticas adequadas e alinhadas com a concorrência é essencial. Claro que os hoteleiros vão reclamar mas esse aumento não os vai prejudicar – por exemplo só este ano Lisboa passou de 2€ para 4€ por noite e pessoa e Albufeira introduziu os 2€ para a estação alta. Barcelona ou Veneza subiram taxas e os turistas aceitaram. É um fenómeno natural e os agentes têm de compreender isso mesmo.

O terceiro é suprir a carência de oferta qualificada a todos os níveis e a promoção específica da procura – como faz esta semana a Grécia no Financial Times, promovendo zonas selecionadas e inexploradas do interior; e tantos outros países o fizeram antes. Tem havido um valioso enriquecimento da atratividade do território com os passeios fluviais ou de comboio no Douro, os passadiços do Paiva que iniciaram uma oferta de mais de 20 infraestruturas deste tipo do Norte ao Sul do país ou com a integração da oferta hoteleira nos clusters de aldeias históricas de Portugal, por exemplo. Mas ainda há muito por fazer a médio e longo prazo... como por exemplo ir mais longe na promoção e na qualidade certificada de atributos distintivos únicos, por exemplo nas tascas de Lisboa, que estão a ter grande sucesso em locais como entre estrangeiros, na oferta de atividades de turismo ativo e guias para excursões, em particular no interior, e na atratividade e acessibilidade ao património histórico com brio -  identificando os casos em que isso não é feito, mesmo que se trate de um hotel de 5 estrelas num edifício histórico no centro de Braga.

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Não obstante não ter havido ainda anúncio da Estratégia de Turismo 2035, já foram apresentadas várias  medidas avulsas com respetiva dotação orçamental em parte resultantes do Programa da AD e veiculadas através da imprensa turística por exemplo:

  • Plano de ação para afirmar a marca Portugal no contexto global, valorizando os seus produtos e serviços em cadeias globais, abrangendo áreas como conhecimento, inovação, segurança, criatividade, qualidade e sustentabilidade.
  • Revisão e reforço de linhas de apoio ao turismo, incluindo a Linha + Interior Turismo e a Linha Turismo + Sustentável.
  • Programa Turismo + Próximo e de Fomento do Comércio de Proximidade.
  • Linha de Apoio à Qualificação da Oferta para apoiar empresas do setor turístico com investimentos de médio e longo prazo.
  • Campanha Internacional de Turismo será lançada com dotação de 6 milhões de euros para aumentar a notoriedade de Portugal como destino turístico em mercados internacionais, visando converter potenciais turistas em visitantes.
  • Programa de Internacionalização de Empresas e Marcas Nacionais.
  • Expansão da Rede de Equipas do Turismo de Portugal nos mercados externos será expandida para aumentar a presença internacional de Portugal em mercados de alto potencial.
  • A reestruturação das Entidades Regionais de Turismo.
  • Plano de Sustentabilidade, Economia Circular e Agenda Climática para o Turismo para o período 2024-2030, reforçando a competitividade de Portugal como destino turístico sustentável.
  • Consolidação da Rede Nacional de Formação em Turismo e reposicionando as Escolas de Hotelaria e Turismo, com foco na internacionalização e excelência.
  • Programa de Integração e Formação de Migrantes e Refugiados no setor do turismo visa melhorar a integração de migrantes e refugiados em Portugal através de formação e integração no setor turístico.
  • Criação da Academia Internacional do Turismo e o Programa de Parcerias Estratégicas para as Escolas de Hotelaria e Turismo no Contexto CPLP.

Apenas pela sua designação, não as conhecendo em detalhe e apesar de desintegradas entre si, considero que estas medidas são claramente interessantes, sobretudo por várias terem um caráter muito concreto e que vão endereçar áreas que ficaram vazias no Estratégia 2027. Acrescem outras orientações positivas como a capacidade de atração em novos mercados que contribua para reduzir a sazonalidade ou qualificar a oferta para segmentos-alvo mais específicos e exigentes.

Não obstante, ainda não se vislumbra o resultado de uma visão global que só uma boa estratégia pode trazer. Não será de surpreender que a maior parte das ações que Portugal deve desenvolver não estejam refletidas nestas 12 medidas, muitas das quais têm interfaces delicadas de gerir no terreno e exigem o compromisso empenhado de stakeholders nacionais e locais.

4. A Estratégia 2035 no quadro do desafio da sustentabilidade do Turismo em Portugal: um comentário final 

O governo assume dar continuidade ao Conselho Estratégico de Promoção Turística com o qual se reuniu em maio deste ano, altura em que o ministro da Economia e o secretário de Estado do Turismo terão consensualizado as preocupações de base que darão lugar aos eixos dessa estratégia. Esta plataforma de boa vontade é um capital precioso para o governo e a sua sustentação passa pela qualidade intrínseca da Estratégia 35 que irá nascer.

De facto, o governo tem na Estratégia de Turismo 2035 uma extraordinária oportunidade de fazer muito melhor do que foi feito antes e estabelecer com assertividade um rumo para o desenvolvimento de Portugal, com maior valor e sustentabilidade. E de ter a coragem de enfrentar os muitos interesses instalados nocivos que a Estratégia 27 deixou em roda livre.

No entanto, repetimos:  ao abordar a Estratégia 2035, o governo tem de começar por entender que conceber uma estratégia não é um trabalho de glamour inspiracional nem de despejar para um powerpoint baldes de ideias e iniciativas desconexas recolhidas ad hoc por um grupo de trabalho sem uma coordenação forte. Dificilmente terá sucesso se não se rodear de especialistas que possam munir o governo e a sua Administração dos factos, das análises, da experiência de concorrentes, de ideias concretas e da capacidade de ter no final um programa realista onde a cada ação cabe um responsável, um orçamento, um prazo e certos requisitos complementares essenciais.

Numa frase, o governo está no bom caminho para não se deixar cair no engodo confortável dos autores do Estratégia 27 e com trabalho de qualidade feito com a ajuda certa tem tudo para fazer produzir, mais do que uma estratégia, um programa de ações e iniciativas que mobilize o setor e a sociedade em geral e que assegure que o Turismo continua a ser um pilar de riqueza e de orgulho nacional.

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Empresário, Gestor e Consultor