No pós II Guerra Mundial, gerou-se um consenso político em torno do estabelecimento de Estados sociais fortes, em parte pela pressão ideológica vinda de leste. Alguns excessos intervencionistas como nacionalizações extensivas, controlos de preços e expansões desmedidas do setor público abriram o caminho para a emergência de forças mais à direita, liberais na economia, no final dos anos 70 e 80. Pessoas como Margaret Thatcher, Ronald Reagan e, em parte, Helmut Kohl representaram esta viragem, promovendo a liberalização de vários mercados, privatizando empresas públicas e colocando um travão à trajetória de crescimento do setor público. Apesar da viragem, mantiveram intactos boa parte dos pilares do estado social do pós-guerra, trazendo alguma racionalidade económica e eliminando alguns dos seus excessos. A União Soviética acabaria por sucumbir, em parte devido ao sucesso económico do Ocidente, que expôs ainda mais o fracasso do seu modelo económico.
A reação da esquerda a estas mudanças apareceu sob a forma da chamada "terceira via": políticos de esquerda que, ao contrário dos seus antecessores dos anos 60 e 70, valorizavam a economia de mercado. O movimento da terceira via mudou a política a partir dos anos 90, com personalidades como Tony Blair, Gerhard Schröder ou Bill Clinton. Em Portugal, António Guterres e José Sócrates tentavam copiar o estilo. A terceira via não colocava em causa o consenso de mercado que prevaleceu nos anos 80 e início dos anos 90, mas escapava ao estilo mais austero e conservador dos seus líderes. Estava iniciado um novo ciclo político.
A cedência do centro-esquerda às regras de mercado abriu a porta ao crescimento de partidos de esquerda radical. A crise financeira de 2009 foi a oportunidade para darem o salto para níveis eleitorais nunca vistos, tendo alguns chegado mesmo a governar ou influenciar diretamente a governação de alguns dos países mais afetados. O Syriza governou na Grécia, o PCP/BE em Portugal e o Podemos em Espanha influenciaram a governação. Até o Sinn Féin na Irlanda, num dos mais conhecidos sucessos de liberalização económica, chegou perto de poder governar. Mesmo não assumindo o poder na maioria dos países ocidentais, estes movimentos haveriam de influenciar toda a forma de fazer política, inclinando o campo político para a esquerda. Dos EUA à Europa, os partidos de centro-esquerda abandonaram a terceira via e encostaram-se mais à esquerda. O mundo tinha voltado a mudar.
O emergir da esquerda mais radical, embora impulsionado por questões económicas, teve um forte impacto na agenda de política social e cultural. O seu crescimento coincidiu com conquistas nos direitos das pessoas LGBT e avanços nos direitos reprodutivos das mulheres. Embalados por alguns sucessos, radicalizaram a política identitária e a guerra cultural, introduzindo conceitos no espaço público como a cultura de cancelamento e a teoria crítica da culpa estrutural, que se tornaram populares nas gerações mais jovens e nos círculos académicos. A sinalização de virtude e a política de cancelamento, alimentadas pelo crescimento das redes sociais, não perdoavam ninguém e foram criando ressentimentos na maioria. Qualquer erro, qualquer desvio à ortodoxia, era razão para enxovalho social num campo de batalha onde sobreviviam poucos, incluindo muitos dos inquisidores.
A reação criou espaço para a ascensão da direita radical, que capitalizou o descontentamento de quem se sentia alienado pelo virtuosismo inquisidor e afastamento cosmopolita de algumas elites. A viragem está a ser radical. Da valorização da sinalização de virtude passou-se para a valorização da sinalização de dureza. Da punição social severa de pequenos desvios de linguagem, passámos para a desvalorização, ou mesmo celebração, de comportamentos abjetos. Partidos como a AfD na Alemanha, o Vox em Espanha, a Frente Nacional em França e o Chega em Portugal aproveitaram esta viragem, propondo-se desmantelar o que consideravam ser os excessos da agenda progressista, embora adotando muito da sua agenda económica.
Apesar da reação à agenda progressista do ciclo anterior, não fazem bandeira da reversão de algumas das principais conquistas desse ciclo, preferindo focar-se em questões como imigração, segurança e casas-de-banho. Entre as principais figuras da direita radical europeia surge até uma mulher homossexual assumida, em união de facto com uma mulher de origem asiática e com dois filhos adotados. Esta situação era impensável até na direita moderada há 20 anos, sinal de que algo de permanente ficou do ciclo anterior.
Cada ciclo deixa uma herança permanente do que conseguiu tornar consensual e cria a sua própria reação naquilo que fez pior. Os ciclos podem durar mais ou menos tempo, ter mais ou menos consequências, deixar uma herança maior ou menor, tudo dependendo da capacidade política de quem o lidera e de quem o combate. Este ciclo, como os anteriores, acabará e dará lugar a outro que herdará algumas coisas deste e transformará radicalmente outras. Quem quiser ver o próximo ciclo terá de combater este de forma inteligente, mas também não se deixar afetar demasiado pela ansiedade das consequências, em boa parte fora do nosso controlo. A única coisa que nos poderá, verdadeiramente, impedir de ver este ciclo terminar e o próximo começar é ser interrompido pelo próprio ciclo da vida. Se tivermos um estilo de vida saudável, e não nos deixarmos afetar em demasia pelo stress do momento político, ainda estaremos cá para assistir a mais dois ou três ciclos. O mundo, indiferente às nossas ansiedades, continuará a mudar, como sempre fez.
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