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Os voos noturnos acordaram a ANAC

E se tudo isto tiver sido parte integrante de um plano maior, executado por Pedro Nuno Santos, que sacrificou entidades, eleitores, contribuintes e residentes?
Os voos noturnos acordaram a ANAC
O ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, durante uma conferência de imprensa, no Ministério das Infraestruturas e da Habitação, em Lisboa, 21 de dezembro de 2021. A Comissão Europeia informou hoje que aprovou o plano de reestruturação da TAP e a ajuda estatal de 2.550 milhões de euros, impondo que a companhia aérea disponibilize até 18 ‘slots’ por dia no aeroporto de Lisboa. MIGUEL A. LOPES/LUSA Miguel A. Lopes/Lusa

A Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) – que desde 1 de janeiro de 2024 tem uma nova presidente – revelou recentemente dados importantes relativamente às multas aplicadas pelo regulador às companhias aéreas durante 2024: foram 10,46 milhões de euros para um total de 147 companhias aéreas, ou seja, um aumento de 433% relativamente ao montante cobrado em 2023, ano em que apenas 68 operadoras foram multadas em 1,94 milhões de euros.

À falta de maior detalhe disponível, a multa média por companhia foi de quase 70 mil euros em 2024, mais do dobro da média verificada em 2023. As descolagens e aterragens entre as 00.00 e as 06.00 – sujeitas a um regime especial devido à legislação de prevenção do ruído – foram o principal motivo de incumprimento em 2024, totalizando 8,52 milhões de euros (82% de todas as coimas), 6 milhões dos quais cobrados logo no primeiro semestre.

Uma primeira leitura destes dados torna por demais evidente aquilo que caracterizou a gestão anterior da ANAC: um sono profundo e prolongado que obliterou, durante anos, o poder sancionatório da entidade e que permitiu os maiores abusos por parte das companhias aéreas, em particular, no que toca aos voos noturnos e madrugadores em Lisboa. Porquê ou, melhor, em troca de quê? E se tudo isto tiver sido parte integrante de um plano maior, executado por Pedro Nuno Santos, que sacrificou entidades, eleitores, contribuintes e residentes?

O ex-ministro das infraestruturas sabia que a agenda da necessidade de um novo aeroporto para Lisboa passava por três grandes elementos. Em primeiro lugar, nunca mais permitir obras de fundo na Portela, aquelas que sempre aconteceram no passado e que provaram não ser necessário novo aeroporto, invertendo o sempre aclamado ponto de saturação – essa aprovação dependia diretamente do seu ministério, em representação do proprietário, o Estado. Em segundo lugar, era necessário controlar a entidade que atribui os slots no aeroporto de Lisboa e conseguiu-o num momento particularmente crítico ao nomear para presidente da NAV uma ex-administradora da TAP e futura secretária de estado do Tesouro, Alexandra Reis. Por último, convinha incendiar a opinião pública e alimentar a fúria e a narrativa de toda uma cadeia de associações pseudo-ambientais, encorajando o comportamento omisso da ANAC – a  nossa “EMEL da aviação” – ao fechar os olhos sancionatórios às permanentes violações das restrições noturnas.

A lei que protege os habitantes de Lisboa (e outras cidades) contra o ruído não é ótima, mas existe, e aquilo que existe só tem força se for fiscalizado e se todo o comportamento prevaricador for devidamente sancionado dentro da moldura contraordenacional disponível. Para exercer o seu ascendente sobre a ANAC – em teoria, uma entidade independente – foi relativamente fácil para o ex-ministro sugerir nomes coadjuvantes da sua agenda para o Conselho de Administração do regulador que são contratados depois de passarem uma entrevista parlamentar risível.

Foi essa ANAC construída por Pedro Nuno Santos, onde inclusivamente colocou um seu ex-secretário de Estado como vogal, que se envolveu mediaticamente na defesa de um novo aeroporto e foi essa ANAC que, até 2023, fechou os olhos e foi clemente ou ausente nas sanções a aplicar às companhias perante a violação da lei dos voos noturnos.

Foi este Pedro Nuno Santos, o ministro que gastou e deu milhares de milhões de euros ao setor aeronáutico dito “estratégico”, mas unicamente destinados às empresas públicas, que deixou o regulador do tal setor estratégico num estado moribundo, com uma presidente com mandato expirado em setembro de 2022 e que apenas foi substituída a 1 de janeiro de 2024.

É impossível dissociar esta diferença abissal das coimas, quer em número de companhias visadas quer nos montantes, da impunidade permissiva praticada pela anterior gestão da ANAC.

No entanto, esta “nova” ANAC não consegue evitar pesadelos: na base, o problema do ruido dos voos noturnos e dos voos madrugadores é, em Portugal, um problema legal porque a lei é demasiado permissiva. Noutros hubs europeus de muito maior envergadura, como o de Frankfurt e o de Londres-Heathrow, existe uma proibição total de voar entre as 23.00 e as 06.00, mas uma tal mudança em Lisboa afetaria sobretudo a TAP, a companhia detida pelo legislador (Estado). Por outro lado, também a moldura das sanções é demasiado leve para que o pagamento da multa deixe de compensar o “crime” por relação às outras opções disponíveis, mas uma revisão destes valores iria afetar sobretudo a companhia do fiscalizador (Estado).

Assim, num país altamente estatal como o nosso, o Estado-proprietário-de-companhia-aérea-em-vias-de-privatização ganha esta luta interna entre as várias dimensões do Estado e não tem qualquer pudor em fazê-lo sacrificando tudo e todos.

Neste contexto de tentativa de maior independência, seria importante que a ANAC prosseguisse com as suas várias missões, nomeadamente a de aconselhamento e aperfeiçoamento da legislação existente e na aplicação da mesma, onde goza de um amplo poder interpretativo, como se constatou recentemente com o subsídio social de mobilidade dos residentes no Porto Santo.

Em todo o caso, a ANAC acordou… e isso pode ajudar-nos a dormir melhor.

Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo

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