Todas as notícias em primeira mão
Todas as notícias em primeira mão
Todas as notícias em primeira mão

Pobreza estatística

É considerado pobre qualquer agregado familiar cujo rendimento seja inferior a 60% da mediana de todos os agregados do país. A medida estatística de pobreza não mede a pobreza, mas a desigualdade.

Sem pensar muito, em que país imagina que existam mais pessoas em risco de pobreza: Eslovénia, República Checa ou Luxemburgo? O leitor habitual provavelmente já espera que esta seja uma pergunta com rasteira. E é mesmo. Segundo o Eurostat, o país com mais pessoas em risco de pobreza entre estes três é o Luxemburgo. Aliás, segundo a estatística mais usada para avaliar o risco de pobreza (incluindo em Portugal) o Luxemburgo tem quase o dobro da percentagem de população em risco de pobreza em relação à República Checa e a mesma que a Hungria.

Será mesmo assim? Será que o Luxemburgo, tido como um dos países mais desenvolvidos do mundo, afinal anda a esconder hectares de favelas no seu território minúsculo? Na verdade, não. O problema é mesmo a forma como a pobreza é calculada. De acordo com a principal estatística usada para medir risco de pobreza é considerado pobre qualquer agregado familiar cujo rendimento seja inferior a 60% da mediana de todos os agregados familiares. Isto faz com que seja muito diferente ser pobre no Luxemburgo ou na Hungria, por exemplo. Estatisticamente, Luxemburgo e Hungria têm a mesma taxa de risco de pobreza, mas para estar em risco de pobreza na Hungria, um casal tem de ganhar, no seu conjunto, menos de 872 euros por mês (10462 por ano). Já no Luxemburgo para que um casal seja considerado em risco de pobreza basta ganhar menos de 2834 euros por mês (34003 euros por anos). Estes valores já estão ajustados pelo poder de compra, o que significa que um “pobre” no Luxemburgo tem um poder de compra de mais do triplo de um pobre (sem aspas) na Hungria. Há pessoas teoricamente em risco de pobreza no Luxemburgo que estariam no quartil dos mais bem pagos na Hungria (reitero, já ajustado pelo poder de compra de ambos os países).

Isto acontece porque a medida estatística de pobreza não é uma medida de pobreza, é uma medida de desigualdade. Embora as duas possam estar relacionadas, pobreza e desigualdade não são a mesma coisa, nem deveriam ser medidas da mesma forma. Pior ainda, com esta medida, mesmo que a pobreza real diminua, a estatística pode não se alterar ou mesmo piorar, caso o desagravamento da pobreza venha com algum aumento na desigualdade.

Para percebermos o absurdo desta medida estatística, basta pensarmos como algumas alterações afetariam esta medida de pobreza. Se amanhã todas as pessoas em Portugal passassem a ganhar o dobro (sem que se alterassem os preços das coisas), a taxa de pobreza ficaria exatamente igual. O mesmo aconteceria se acontecesse o oposto. Se amanhã um desastre económico levasse a que toda a gente passasse a ganhar metade, teríamos um aumento catastrófico da pobreza real, mas esta medida estatística manter-se-ia exatamente igual, como se nada tivesse mudado, como se mantivéssemos o número de pobres. Mais absurdo ainda, se a metade mais pobre passasse a receber metade, mas a metade com mais rendimentos passasse a receber um terço, estatisticamente a pobreza diminuiria. Se entrassem em Portugal 100 mil pessoas altamente qualificadas com rendimentos elevados, muitas pessoas passariam automaticamente a ser consideradas pobres, mesmo que não o fossem antes e nada se alterasse para elas. Poderia continuar eternamente com isto, mas não vou maçar mais os leitores com exemplos. Penso que por esta altura já perceberam o absurdo de avaliar a pobreza com base nesta métrica que, infelizmente, é a mais habitualmente usada no discurso público.

Esta medida de pobreza (que, como vimos, não é de pobreza, mas de desigualdade) é usada pelo simples facto de ser a mais simples de calcular. Mas para percebermos verdadeiramente a evolução da pobreza em Portugal ou noutro país qualquer, é importante usarmos medidas de pobreza absoluta. As medidas de pobreza absoluta medem a efetiva capacidade de os agregados familiares acederem a um conjunto de bens e serviços considerados como essenciais (habitação, alimentação, saúde, transportes, vestuário, etc). Com este objetivo, saúda-se o esforço de quatro investigadores (Bruno P. Carvalho, da Universidad de Alcalá, e João Fanha, Miguel Fonseca e Susana Peralta, da Nova SBE) que lançaram recentemente um estudo sobre a pobreza absoluta em Portugal. Os investigadores descobriram que a taxa de pobreza absoluta é mais baixa em todo o país do que os indicadores de pobreza relativa apontavam, com uma exceção: Lisboa.

Apesar de os rendimentos noutras zonas do país serem mais baixos, também é mais comum os residentes terem casa própria ou conseguirem pagá-la mais facilmente, o que lhes permite viver melhor, mesmo com um rendimento mais baixo. Os investigadores também concluíram que a pobreza entre as pessoas mais velhas é substancialmente mais baixa do que as estatísticas usadas habitualmente apontavam (a diferença entre os mais novos é pequena ou até negativa), muito provavelmente também devido ao efeito do custo da habitação porque é mais provável as pessoas mais velhas terem casa própria ou arrendada com valores baixos.

Medidas estatísticas deste tipo não são isentas de problemas. São, primeiramente, mais complicadas de calcular. Em segundo lugar, podem estar sujeitas a erros temporários quando existem grandes ajustamentos na inflação ou no valor da moeda que afetem salários e preços de forma desfasada. Este desfasamento pode gerar flutuações nas estatísticas que não refletem a verdadeira pobreza no terreno (o caso recente de aumento e diminuição repentina na Argentina é um bom exemplo disso). No entanto, em países desenvolvidos, com moedas estáveis e bons departamentos nacionais de estatísticas, estes obstáculos são fáceis de ultrapassar.

A pobreza é a maior chaga social de qualquer país e o combate a essa situação deve estar no topo das prioridades de qualquer política económica. Para o conseguirmos, é importante que esse combate seja feito com acesso a dados sólidos que nos permitam entender evoluções reais. Estatísticas que não refletem a evolução efetiva da pobreza não servem para avaliar o sucesso ou insucesso dos governos no combate à pobreza. Esperemos que este estudo da Nova SBE sirva de base para a futura avaliação de políticas de combate à pobreza.

Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira

Veja também