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Trump, a Europa e o nosso 5 de Novembro

A julgar pelas últimas semanas, Trump que se cuide, não vá a sua ânsia por isolar a China e atrair a Rússia acabar por isolar os EUA de todos os seus aliados.

O poeta John Milton era um talentoso propagandista político. Feroz inimigo do governo monárquico e dos tentáculos tirânicos da Igreja de Roma, compôs estes versos para memorização do povo inglês: remember, remember, the 5th of November. À época, Milton queria garantir que os ingleses jamais se esqueceriam de uma terrível conspiração para dinamitar a Câmara dos Lordes em Londres, assassinar o rei protestante Jaime I e fazer regressar a herética Inglaterra à família dos reinos católicos. Milton escreveu estes versos para fixar na memória do povo inglês a infâmia do acontecimento e alimentar o inevitável ódio anti-católico.

Calhou-nos também termos vivido um 5 de Novembro cuja importância não poderá ser esquecida. Falo evidentemente do 5 de Novembro de 2024, quando Donald Trump foi eleito para o seu segundo mandato. O que assistimos desde a sua tomada de posse tem sido uma torrente avassaladora de iniciativas, decisões, recuos e ameaças. Mas de tudo isto, o que mais abalou a Europa foi, sem dúvida, a cena indecorosa na Sala Oval.

Repleta de jornalistas e com as câmaras ligadas, a sala tornou-se no cenário da descida aos infernos da relação entre Trump e Zelensky. Há muito que Trump odeia Zelensky. Tudo remonta aos lamentáveis episódios do primeiro mandato, quando Trump tentou chantagear Zelensky para que este investigasse o caso do computador de Hunter Biden. Acrescia que muitos à volta de Trump acreditavam que a origem da suspeita de que Trump obtivera a traiçoeira cooperação da Rússia para fins internos estava numa armadilha montada por ucranianos. Nessa altura, Zelensky resistiu a tudo isso com subtileza e até uma certa elegância.

Os primeiros minutos da reunião transmitida em directo da Sala Oval pareciam não denunciar o carácter de reality show em que Trump transforma tudo o que o envolve. Trump até então afirmara princípios não inteiramente desrazoáveis do ponto de vista geopolítico. Por exemplo, que a guerra não podia ser vencida pela Ucrânia sem uma escalada que o Ocidente jamais acompanharia. Que quando o campo de batalha não decide, a mesa das negociações é o passo seguinte e à volta da qual todos os participantes, incluindo os mais detestáveis, devem estar sentados. Podíamos até ver na estratégia de Trump uma adaptação da famosa iniciativa de Nixon e Kissinger de aproximação da China de Mao para isolar a então União Soviética. Agora, prosseguia a conjectura, seria a vez de isolar a China, trazendo a Rússia para relações mais amigas dos EUA. A julgar pelas últimas semanas, Trump que se cuide, não vá a sua ânsia por isolar a China e atrair a Rússia acabar por isolar os EUA de todos os seus aliados.

Mas, naqueles minutos e nos dias anteriores, Trump não se coibiu de repetir várias mentiras, que são também as mentiras de Putin, nomeadamente sobre as credenciais democráticas de Zelensky ou sobre o ponto da situação no campo de batalha. Infelizmente, a subtileza e a elegância que bem tinham servido a Zelensky falharam-lhe naquele fatídico início de tarde em Washington. Perante o recuo de um aliado decisivo que agora quer converter-se num mais neutral mediador, Zelensky perdeu o controlo da situação. A agressividade do vice-presidente JD Vance, a querer mostrar serviço ao seu chefe diante das câmaras, acompanhando a triste degeneração da direita americana para o que um conservador jamais pode aceitar, o culto da personalidade do líder, provou ser demasiado para o sentido de oportunidade de um Zelensky pressionado e desgastado.

Fica para a galeria das censuras políticas e da repugnância moral a conversa indecorosa de dois políticos deslumbrados com o seu próprio poder na segurança dos salões a dar lições sobre o sofrimento dos ucranianos ao líder improvável que a resistência à invasão encontrou no momento irrepetível. Que a actual liderança americana não flexibilizará as suas prioridades em nome de nenhum outro princípio, tornou-se muito claro. Que Trump revelou uma vez mais o fundo do seu carácter como político, uma infinita egomania a que agora se junta uma longa lista de ressentimentos pelos quais ele quer vingança, e que tal acrescenta perigo e incerteza à situação europeia, ninguém pode duvidar. No final daquela lamentável reunião televisionada, Trump iniciaria uma patética recriminação de tudo o que o pobre Putin teve de sofrer com a associação a uma conspiração que serviria de base às acusações que lhe tinham sido feitas quando cumpria o seu primeiro mandato e que conduziriam ao primeiro processo de impeachment. Quando Zelensky foi convidado a sair da Casa Branca por Trump, deixando o acordo dos recursos minerais por assinar na sala do piso superior, Putin foi o único a ter um ganho de causa. Todos os outros, incluindo Trump, tinham perdido. Para a Ucrânia era a própria existência como nação independente que ficava mais perigada do que nunca.

Tal como Zelensky tentou alertar Trump e Vance, não podemos ignorar o fracasso obsceno dos acordos de Minsk em 2014 e 2015, quando um cessar-fogo foi efectivamente imposto aos ucranianos pelos seus aliados a troco de garantias nenhumas, como o tempo se encarregaria de demonstrar. Para a Europa, se os seus políticos quiserem mostrar-se à altura dos desafios, os versos de Milton devem ser uma vez mais recitados. É verdade que a Europa não conseguirá fazer face às ameaças que tem diante de si, nem auxiliar capazmente a Ucrânia, sem os EUA. Alguma conciliação terá de ser, portanto, efectuada. Mas, até Trump sair da Casa Branca, o 5 de Novembro mudou muita coisa.

A Europa das platitudes políticas, da fraqueza militar, das prioridades ideológicas, das obsessões danosas, da burocracia, do esvaziamento espiritual, tem de mudar também. E rapidamente. Os políticos europeus têm de falar com coragem e rectidão aos seus eleitorados. Dar-lhe conta de novas prioridades orçamentais, contribuir para a formação de uma consciência política mais realista do mundo, cuidar das estruturas civilizacionais das nossas sociedades que estão em estado avançado de delapidação. Tudo isto são recursos indispensáveis para os desafios que se avizinham. A Europa tem de mudar porque o mundo que pregou já não existe. Ou melhor, nunca existiu.

Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira//Miguel Morgado escreve com o antigo acordo ortográfico

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